
Luís Capucho
Pauta: Bruno Cosentino, Pérola Mathias, Ana Simonaci, Edil Carvalho, Rafael Julião, Rafael Saar, Jacqueline Figueiredo. Transcrição e edição: Bruno Cosentino. Revisão: Pérola Mathias e Rafael Julião. Ensaio fotográfico: Ana Rovati.
Esta entrevista é lacunar. Transcrita aqui na íntegra, é um instantâneo do momento em que foi realizada, com silêncios, digressões e iluminações. Em grande parte isso se deve à seleção dos entrevistadores, todos amigos e admiradores da obra de Luís Capucho. Por isso, algumas perguntas partem de pontos adiantados – muito já se sabe sobre o entrevistado. As respostas revelam um pensamento cujo processo flagramos no próprio ato da fala. São a um só tempo límpidas e densas, permitindo aos leitores tanto o entendimento rápido como a reflexão detida. Habitam, como em seus textos e canções, a superfície e a profundidade do ser e das coisas.
Luís Capucho é cancionista, escritor e pinta a série de óleos As vizinhas de trás. Como compositor, já foi gravado por artistas de alcance como Cássia Eller (“Maluca”), Pedro Luís (“Máquina de escrever”), e entre seus grandes admiradores está Ney Matogrosso. Tem cinco discos gravados: Lua singela (2003), Cinema Íris (2012), Antigo (2012), Poema maldito (2014) e o recente Crocodilo, de 2019 – este último produzido em parceria com nomes de destaque da canção contemporânea do Rio de Janeiro e de São Paulo. Já publicou quatro livros: Cinema Orly (1999), Rato (2007), Mamãe me adora (2012) e Diário da piscina (2017). É um artista consagrado pela crítica desde a década de 1990, quando se destacou entre seus pares de geração com uma poética crua e direta.
A maior parte de sua obra foi criada após o coma, ocorrido em 1996. Nesse ano, não se sabe o motivo – se foi agredido por homofóbicos ou se acometido de convulsão –, ficou um mês entubado no hospital e saiu com sequelas que iriam redimensionar sua vida e sua estética, ambas indissociáveis. A autoficção é um importante registro de Luís. No decorrer da entrevista, o artista não perde o fio da autofabulação, seja quando “inventa” respostas, seja quando apresenta características de sua personalidade que, à força de repetí-las, reforçam o personagem.
Gostaríamos de agradecer aos entrevistadores o encontro e as perguntas sagazes. E a Luís Capucho, por aceitar gentilmente nosso convite e se dar por inteiro às respostas. É com muita alegria que a Polivox publica este retrato de um dos artistas mais singulares e instigantes da canção e da literatura feitas hoje no Brasil.
Fotografia de Ana Rovati.
Bruno Cosentino – Luís, para a gente começar a conversa, queria que você nos contasse como chegou até aqui – onde você nasceu e foi criado, com quem você andou, quando surgiu seu interesse por canção, literatura e pintura?
Luís Capucho – Eu queria dizer que tô super feliz, tendo companhia nesse isolamento, que é muito legal, e dizer que eu me acho o maior ignorante; eu tô bem nervoso, mesmo que eu esteja aqui para falar de mim mesmo e das coisas que eu faço, eu fico muito nervoso, porque eu me acho muito ignorante pra explicar tudo. Eu sou filho da minha mãe, que me teve sem marido e me criou pela casa dos outros. E eu acho que a minha história com a música e com a literatura e com a pintura tem a ver com o fato de eu ter me alfabetizado. Porque logo que que eu me alfabetizei – minha mãe tinha um outro filho, que foi criado por uma família mais abastada – e logo que eu me alfabetizei, ela me pedia para escrever cartas pra ela. Então, eu escrevia as cartas para os irmãos dela também e eu acho que é por causa disso que eu sou artista, porque eu me alfabetizei. [Risos].
Bruno Cosentino – Você nasceu em Cachoeiro de Itapemirim e depois você veio pra Niterói direto, com que idade? Você se alfabetizou lá ou aqui?
Luís Capucho – Ih… Isso é a maior confusão. Eu nasci em Cachoeiro e sou filho da minha mãe com esse patrão para quem ela deixou o meu irmão; e ela saiu comigo para trabalhar em outros lugares, porque não queria mais trabalhar na casa do patrão. Eu nasci em Cachoeiro, ela foi para Alegre, para a casa de um irmão dela e me registrou lá. Então, na minha certidão tá assim: não tem o sobrenome do meu pai, tem o nome do pai do meu irmão, mas no meu nome só tem o sobrenome da minha mãe. E na minha identidade tá que eu nasci em Alegre, porque a menina que fez a identidade, ela viu as folhas do cartório tal, em Alegre, onde eu fui registrado, e aí na minha identidade eu tô como nascido em Alegre. Ela colocou o lugar que eu nasci como se fosse o lugar onde fui registrado, entendeu? Mas tá escrito lá também que eu nasci em Cachoeiro. Então, eu vivi em Cachoeiro, nas cidades próximas, em Alegre, onde tem os irmão da minha mãe, e em Marapé, onde era a casa do patrão dela. Ela tinha amigos também, que às vezes quando ela ia trabalhar em algum lugar que não me aceitavam como agregado, ela me colocava na casa de algum irmão ou na casa de algum amigo. E tinha uma amiga dela em Marapé que o nome era dona Etelvina, e ela era negra, então ela me dizia para chamar ela de Mãe preta. Então eu conheço ela como Mãe preta. Eu vivi minha infância em Alegre, em Marapé, em Cachoeiro e em Jerônimo Monteiro também. Teve uma época que minha mãe foi trabalhar num seminário; aí eu fui morar com ela nesse seminário, que era em Jerônimo Monteiro. Depois, quando eu tinha 13 anos, eu quis sair de Cachoeiro. E esse meu irmão, a família que criou ele tinha um lance que quando os filhos ficavam jovens adultos e terminavam os cursos assim primeiros, eles iam fazer faculdade aqui em Niterói, iam estudar na UFF. E o meu irmão veio nessa história também, estudar aqui. Quando eu fiz 13 anos, ele morava aqui em Niterói. Eu conhecia ele porque eu escrevia as cartas; e eu comecei a mandar cartas pra ele (não eram mais as cartas da minha mãe) para ele me trazer pra cá. Aí eu vim pra cá, ele tinha uma namorada na época; fiquei no quarto de empregada da namorada dele. Eu terminei o segundo grau aqui. Logo depois a minha mãe conseguiu um trabalho na cabeça de porco aqui em Niterói, no centro, e tinha um quartinho pra gente; aí eu fui morar com ela de novo. Então foi isso.
“As perguntas me apavoram, eu não sei responder, eu tenho que inventar uma resposta.”
Ana Simonaci – Capucho, eu queria te perguntar sobre um trecho que está no seu blog, o blog azul, que tá no site. Eu queria perguntar sobre um trecho recente, você diz assim: “Live. Live, que é como hoje chamamos mostrar as músicas no isolamento.” Esse e outros trechos estão lá, é um blog bem antigo, que você publica desde 2006. Eu queria saber como é a sua relação com seu blog, porque você tem um livro chamado “Diário de piscina”, que é um diário, e o blog também é um diário. Como é a sua relação com o diário, com o blog; e a quarentena mudou sua relação com as redes, tanto por fazer live, quanto pela escrita do blog, em redes sociais também?
Luís Capucho – Esse blog se chamava blog rosa e agora ele se chama blog azul. Ele se chamava blog rosa porque era um blog que a Suely [Mesquita] e a Mathilda [Kovak] fizeram para divulgar uma série de shows que iam fazer no Sesc Copacabana; um projeto que chamava Bolsa Nova. Isso foi em 2003. Todas as pessoas que participavam dos shows postavam no blog e eu era muito assíduo. Eu adoro computador. Então eu postava muito. O Bolsa Nova aconteceu, fizemos os shows, eram artistas mulheres do Rio de Janeiro e algumas de São Paulo, e tinha três homens, que éramos eu, Marcos Sacramento e o Glauco Lourenço, que foram apelidados de homens de peito. O show que a gente fez junto teve esse nome: “Homens de peito”. E aí todo mundo foi saindo do blog e só eu ficava lá postando. Pedi a Suely, que na época era quem tava mais à frente, que me desse o blog. Aí ela deu o blog pra mim e eu troquei o nome de blog rosa para blog azul. E escrevi muito. Eu escrevo desde esse ano de 2003. Mas agora com o Facebook, o Facebook tá me chamando atenção. Então, acabou que não posto nem no Facebook direito, nem no blog. Eu não escrevo mais. E no Diário da Piscina, ele foi um livro que eu escrevi no ano 2000, 2001. Então, o Diário… influenciou muito na escrita do blog. Eu saí do Diário… – porque os meus escritos mais antigos são todos manuscritos, eu tenho livrinhos com cada trecho, cada livro meu tem um livrinho – e aí eu venho escrevendo no blog e pegando a internet, conversando muito em chat. Conheci o Pedro, por exemplo, num chat. Porque eu achava meio frio o computador no início; você digitar, não era sua letra, eram só as fontes, eu achava isso meio distante, mas depois com o meu treino, minha prática e sabendo que tem pessoas atrás, isso ficou mais quente do que escrever sozinho, manuscrever. Então, eu penso em escrever um livro agora e estou escrevendo no computador. E vou fazer o contrário, eu vou digitar ele todo primeiro e quando estiver pronto, eu vou manuscrever. Acho que tem uma onda interessante assim, fazer o caminho inverso.
Edil Carvalho – Eu tenho três perguntas que na realidade valem uma. Eu queria saber o que você pensa sobre o corpo, sobre a alma e sobre o sexo.
Luís Capucho – Eu pedi ao Bruno as perguntas antes. Eu sempre peço. A vez que eu fiz o “Escuta”, eu também pedi, porque as perguntas me apavoram, eu não sei responder, eu tenho que inventar uma resposta. Então, se eu tiver um tempo assim pra inventar, fica mais fácil, porque eu nunca sei mesmo qual é a resposta.
“O corpo não é deus. O corpo é o pai, a alma é o filho e o sexo é o espírito santo.”
Edil Carvalho – E você inventou uma resposta pra minha pergunta?
Luís Capucho – A sua pergunta, no texto que o Bruno me mandou, vinha mais lá na frente e, influenciado pelas respostas anteriores, tinha a ver a resposta. Eu falei assim: que o corpo era deus… como é que é? Peraí. [Risos.] Ah não, o corpo não é deus, não. O corpo é o pai, a alma é o filho e o sexo é o espírito santo. Mas isso fazia sentido com as coisas que eu já havia dito antes. Porque a Jacqueline tinha me perguntado sobre a ligação dos meus textos com a religião; outra pergunta do Rafael [Julião] que veio meio por isso também. Então, eu inventei uma resposta pra isso: o corpo é o pai, a alma é o filho e o sexo é o espírito santo.
Edil Carvalho – Acho que depois que você responder às perguntas da Jacqueline e do Rafael, vou fazer a minha pergunta de novo, porque talvez faça sentido para todos nós como fez pra você responder as perguntas na sequência que você respondeu, tá bom?
Luís Capucho – Tá bom. Espero que eu me lembre. [Risos.]
Jacqueline Figueiredo – Já que citou essa questão que eu tinha colocado… Eu fiquei muito curiosa com essa travessia que o Luís faz da literatura à música, que às vezes vem com um tom sacro e às vezes vem com um tom profano. Eu ficava muito eufórica com essa mistura, porque não é uma coisa comum. Geralmente, essas coisas na religião, e quando a gente está em estados de profanação, elas são completamente separadas uma da outra. Eu queria saber do Luís, como é pra ele fazer essa aproximação, não só como ele se sente quando faz essa aproximação, mas de onde ele tira essa aproximação, qual que é a fonte dessa aproximação.
Luís Capucho – São sempre perguntas muito difíceis. Eu também tinha respondido essa, mas eu não vou olhar não, porque… [longo silêncio]. Aproximação de sexo, literatura e religião, né? De arte e de religião…
Jacqueline Figueiredo – E da coisa sacra. Por exemplo, em Mamãe me adora, é muito curioso como de repente você tá ali ao lado da sua mãe e aí você desce do ônibus e se masturba no banheiro. São dois cenários muito distintos, não são cenários que aparecem na nossa mente como coisas próximas, e na sua obra isso vai sendo aproximado, você vai colocando isso perto, isso perto, isso perto. Eu me lembro, eu já te fiz essa pergunta uma vez, e você me disse que tinha a questão da cobra, que inclusive você usa no [disco] Crocodilo… Você se lembra disso?
Luís Capucho – Não.
Jacqueline Figueiredo – Tô tentando ajudar aqui, me ajuda… [Risos]. Você consegue entender o que eu estou dizendo, que você faz uma profanação, porque Maria é assim a grande mãe santa e você pega isso e coloca do lado do cara que se masturba no banheiro – entende que existe uma profanação aí, ou não?
Luís Capucho – Eu acho que eu não entendo não, sabia?
Rafael Julião – Capucho, eu hoje reouvi [a canção “Mamãe me adora”], e tem uma hora que você fala que há homens que são como aparição, como Nossa Senhora, e no [livro] Cinema Orly, você chega a falar numa cena de Maria e de Cristo com uma espécie de fralda e você fala sobre o corpo de Cristo ali. Então, você está fazendo referências ao interesse por homens, ao sexo, e quando a gente vê aparece Nossa Senhora, aparece Jesus, na imagem de um homem machucado, aparece o próprio corpo de Jesus segurado pela mãe. Parece que o fato de você não estar pensando diretamente na resposta tem a ver com o quanto você mistura no seu trabalho esses dois campos que eram, como a Jacqueline tá falando, para estar longe um do outro. Tradicionalmente, um homem gostoso não poderia ser como Nossa Senhora, não é a relação que se faz. Não sei se eu ajudei, se eu fui impertinente, mas eu tentei.
Jacqueline Figueiredo – Obrigada, Rafael. [Risos].
Luís Capucho – Porque isso são coisas da minha biografia, a minha história com a religião. Lá em Marapé eu ia muito à igreja, a igreja era em cima da casa, tinha um morrinho assim, e a igreja em cima. E isso é uma coisa louca, porque tem essa religião, tem a igreja, que é uma coisa tão importante, e a igreja ficava em cima do morro, na cabeça da cidade, e tem as coisas que eu sinto e que eu penso e isso vai criando um bolo que quando você vai desfiar, quando você vai contar uma história, vem as coisas importantes. Não é só em Marapé que tem a igreja na cabeça, em Alegre a igreja era também em cima do morro. Em Jerônimo Monteiro, quando a gente morou lá, o seminário era ao lado da igreja, também no alto do morro. Então esse lance das igrejas, que ficam – eu digo a cabeça da cidade, é a cabeça, que é o que tá no alto, né? – quando eu vou contar uma história, isso ganha uma importância, entendeu? E aí, quando eu vou contar de mim e eu vejo que é tão importante a imagem da igreja, tem uma importância tão grande dentro da cidade, isso acaba virando meu universo, meu universo íntimo.
Ana Simonaci – Tem um debate do Mário de Andrade com o Alceu Amoroso Lima em que eles discutem justamente isso; porque o Alceu acha que catolicismo e profanação são opostos no Brasil e o Mário de Andrade diz que não, que a gente tem a Nossa Senhora no meio do carnaval e ele vai dizer que na verdade o Brasil é essa mistura de Cristianismo com Dionísio. Então, às vezes eu penso, Capucho, que em sua obra você tá ali com uma antena ligada no que é o Brasil, que é realmente essa mistura da Nossa Senhora, da igreja que tá no morro, e embaixo um bloco de carnaval passando e tudo isso acontecendo junto.
Luís Capucho – Quando eu fui escrever [o livro Mamãe me adora], eu queria contar a história de uma viagem até Aparecida. Eu achei de uma pretensão muito grande, porque é o Brasil, né? Aparecida é a padroeira do Brasil. Então, contar esse episódio meu, de uma viagem minha até Aparecida com a minha mãe, envolveria uma nação inteira. Eu achei pretensioso que eu quisesse fazer isso. Mas aí eu fui fazendo e contei a minha história. Porque o lance é contar uma história.
“Se eu me coloco como centro da coisa, o centro que produz o caminho, então não há uma transgressão.”
Bruno Cosentino – Luís, é claro que a igreja e todo esse ambiente religioso, sobretudo os monoteístas e mais ainda a religião católica, é de muita regulação moral. E você tem esse contato com a religião na sua experiência de vida. A profanação que você promove é vista como transgressão, algo que é proibido, que a Igreja e as convenções morais proíbem, mas que você não deixa de fazer. Muita gente encontra prazer no próprio fato daquilo ser interdito, ou seja, porque é proibido, é prazeroso. Eu queria saber de você se o sexo pra você é mais gostoso quando é proibido, ou não?
Capucho – Pois é. Eu fiz uma live outro dia, que o Claudinho [Salles] me chamou, que éramos eu, o Ney Matogrosso e um garoto da universidade que estuda o movimento LGBTQ+, e o título da live era amor, transgressão e num sei o quê, eram três coisas. E a live acabou não dando certo, porque uma hora lá o áudio não funcionou. E eu fiquei pensando nisso, porque eu não me sinto transgredindo, entendeu? Se eu me coloco como centro da coisa, o centro que produz o caminho, o meu caminho, eu produzo ele, eu produzo ele com as coisas que brotam, que vem de mim. Então não há uma transgressão. Eu tô fazendo um caminho, não é um caminho de transgressão. É um caminho de integridade, assim, se é essa a palavra, eu quase não uso essa palavra. Então, é uma coisa inteira, tô indo, né? Eu não acho que tem transgressão não.
Bruno Cosentino – Obrigado, Luís. Linda a tua resposta. É isso mesmo que eu acho de você também. Tô até emocionado.
Pérola Mathias – Já que vocês entraram nesse papo da religião e isso tem a ver também com uma memória muito forte de ver as igrejas ali nas cidades que você passou, queria saber se seu contato com a religião, desde esse momento, que tá começando a entender a vida, se a forma como você pensava isso antes e hoje tem alguma coisa em comum.
Luís Capucho – Eu comprei um vinho para ver se eu me destravo. [Dá um gole.] Você perguntou se eu acho diferente a religião que eu olhava quando era mais garoto e agora, é isso?
Pérola – E se tem essa ligação, se não tiver, você fala não e pronto, tudo bem.
Capucho – Eu acho que eu tenho uma coisa meio esquizofrênica. Porque os esquizofrênicos têm uma coisa com a religião grande, né?, tipo neguinho diz que é Jesus. Eu me lembro de na orelha do Cinema Orly, a Mathilda [Kovak] ter colocado uma coisa assim meio de Jesus. Então, eu acho que tem essa coisa de religião, com o mistério da vida, entendeu? Aqui no meu quarteirão tem três igrejas, tem duas igrejas evangélicas e uma igreja espírita. E a minha vizinha de trás abriu um culto na laje dela. Então, aqui tem uma coisa forte, nesse pedaço aqui. Eu até brinco que a castanheira aqui da frente recebe essa energia misteriosa e é uma castanheira linda por causa disso. Eu andei frequentando a igreja evangélica por muito tempo quando a minha mãe era viva e eu tava todo depauperado fisicamente; eu ainda usava bengala; ela me levava para a igreja batista, eu ficava ouvindo os sermões, mas não fiz vínculo com ninguém; a minha mãe fez, mas eu não fiz. Depois que a minha mãe morreu, eu saí da igreja batista e fui para o centro espírita, porque ela tinha morrido, tem a coisa do espírito, eu queria saber como é que era. E aí a mesma coisa. Tem as regras, é uma coisa quase como a de um exército, uma coisa meio bélica, de luta, de exército de Jesus Cristo. Eu não sou um cara bélico. Mas eu também acho que eu sou, porque tinha uns dias que eu olhava pra pessoa que fazia o sermão na igreja espírita e eu fazia um esgar assim – quando eu via, eu já tava com aquilo, um esgar na minha boca, de ódio pra ela, ouvindo aquele sermão. E ela percebeu, e um dia um espírito baixou, era um espírito alemão, falando uma coisa super ríspida, uma coisa super irada, e eu senti que foi meio pra mim. E depois eu não fui mais. Depois desse dia que eu fui muito agressivo com ela – sem falar nada, eu fui agressivo na minha figura, na minha presença – e aí eu ainda fui mais um tempinho e depois eu não fui mais. Mas eu sou muito religioso. Depois que minha mãe faleceu, eu mantive um altarzinho aqui pra ela; durante uns sete anos eu mantive uma vela que nunca se apagou. Uma vela apagava e eu acendia uma vela de novo, pra ela. E eu tenho isso de religião, mas eu não consigo me enturmar com o coletivo da coisa.
“Eu tenho muita poeira na minha casa, e eu fico olhando pra ela, eu vou ter que limpar isso.”
Rafael Julião – Luís, eu tô ouvindo um cachorro latir aí ao fundo, você tem até essa imagem do cachorro que latindo ao fundo é bonito, mas que de perto ninguém gosta; você já falou em castanheira, e de alguma forma esse mundo da pandemia abriu a casa da gente. Agora, a gente tá te entrevistando e vendo um pedacinho da sua casa. Eu queria que você me dissesse se esse cachorro é seu, se para além da castanheira aí fora, você tem plantas em casa; queria que você falasse um pouco da sua casa, o que tem na sua casa, quais são os objetos; cachorros, plantas, objetos – queria que você falasse dessas coisas, desses seres da casa.
Edil Carvalho – Eu vou aproveitar e fazer um parênteses e perguntar se o galo que tá cantando é daí também.
Luís Capucho – Esse galo é lindo, né? Na verdade são dois galos. Eu tenho na verdade muita poeira na minha casa, poeira, muita, e eu fico olhando pra ela, assim, eu vou ter que limpar isso, mas eu nunca resolvo a situação; fica, vai sedimentando. O cachorro é da minha vizinha de baixo, é o Lorde, os galos são do lado, plantas eu não tenho, mas o Pedro mora… O meu prédio é um prédio de três andares e de dois apartamentos por andar. Eu moro no terceiro andar, nos fundos e o Pedro mora no apartamento da frente. O Pedro é quem tem as plantas e o Pedro tem também uma gatinha agora, que ele trouxe pra cá [a Linda Evangelista]; ela é uma gatinha superbacana, porque ela não desce a escada, morre de medo de descer a escada, não vai na janela, porque também tem medo; e ela deve estar dormindo, ela não sai do armário, ela fica dormindo muito.
“A repetição é um mestre, porque o sol nasce todo dia e você tem um dia e depois tem uma noite, isso te ensina alguma coisa.”
Rafael Saar – Luís, a religião tem um lance muito forte da repetição, a repetição da oração, a repetição da fé, do outro, do coletivo. E você levava isso no Cinema Orly, que tem a repetição de ir todos os dias ao cinema, como num culto na igreja; a repetição das “Vizinhas de trás”, da mesma figura repetida, de você ir nadar todos os dias, e você escrever todos os dias no blog; eu acho que você tem muita ligação com o lance da repetição. Queria que você falasse um pouco disso; e como você busca inspiração na repetição e no que é excêntrico também.
Capucho – Eu me lembro que quando eu escrevi o Cinema Orly, eu mandei pra uma editora, que na época se chamava GLS – essa sigla eu acho que nem é mais, né? – mandei pra várias editoras, mas essa foi a única que me respondeu. E ela me respondeu dizendo que o livro tinha uma alta qualidade literária, mas que tinha alguns defeitos. Ela enumerou os defeitos e sugeriu que eu melhorasse. E um dos defeitos era a repetição do Cinema Orly, que era uma coisa que eu não achava um defeito, era uma coisa do livro, daquela história. Eu acho que a repetição na verdade ela é um mestre, é o primeiro mestre que a gente teve, o mestre antes dos mestres, porque o sol nasce todo dia e você tem um dia e depois tem uma noite e depois tem um dia e depois tem uma noite e depois tem um dia e depois tem uma noite. Então, isso te ensina alguma coisa. É um mestre mesmo. Com as “Vizinhas…”, por exemplo, você vai se aperfeiçoando na repetição. Eu pego uma primeira vizinha e pego uma vizinha de agora, as coisas que eu já consegui cavucar ali, de relevo, de definição, é muito grande. Então, eu acho que é isso, a repetição tem tudo a ver. [Risos].
Ana Simonaci – O [Rogério] Skylab, no ensaio que escreveu sobre a sua obra [O sublime na obra de Luís Capucho], vai dizer que o seu primeiro disco em estúdio, Lua singela, lançado em 2002, após o acidente, traz canções em parceria com Mathilda Kovak, Suely Mesquita e Marcos Sacramento, além de suas autorais, como “Lua Singela”, “Os Bichinhos”, “Maluca” e “A Vida é Livre”. Ele diz assim: “Dessas, poderíamos separá-las em dois grandes grupos: as que pertencem à série das músicas ligadas ao corpo; e as pertencentes à série das músicas abstratas e simbólicas”. Como esse disco foi o primeiro gravado após o acidente e a sua voz tá diferente, o violão tá diferente, eu queria saber se você pensa que o acidente influenciou seu pensamento sobre corpo e espírito. Você teve essa reflexão e você quis colocar isso nas letras ou isso não foi proposital – você ficou pensando sobre isso durante o Lua singela?
Luís Capucho – Eu acho que o corpo e o espírito são coisas que existem pra mim desde sempre. E eu acho que isso vinha se desenvolvendo. Com o coma, eu não acho que isso tenha se modificado. Eu continuei sendo eu mesmo. Só que com as limitações que o coma… Eu me lembro que da primeira vez que eu ouvi, quando cheguei em casa, a fita do Antigo [primeiro disco de Luís, gravado ao vivo no Café Laranjeiras], eu chorei, assim, chorei, chorei, chorei, porque isso eu não poderia fazer mais, era uma coisa que eu fazia todo dia, pegava o violão e entrava naquela frequência daquelas músicas, aquele jeito de… E aí não ia ter mais. Foi uma coisa que eu chorei muito. Depois eu fiquei tentando. No primeiro ano, eu não tentei nada, mas depois eu comecei a tentar o violão de novo, e hoje em dia eu não tenho mais pena, porque eu acho que consigo me satisfazer com o que faço hoje. O coma só modificou o meu formato, a forma como eu apresento, mas o meio, o miolo, é o mesmo.
“Quando vocês falam acidente, me lembra esse cara que desapareceu, mas que na verdade morreu.”
Bruno Cosentino – Luís, estamos falando do acidente, porque aqui todos nós já conhecemos a história, mas eu queria que você contasse o que aconteceu para as pessoas que vão ler sua entrevista, porque de fato é um divisor de águas na sua vida, é óbvio, e na sua carreira também. Muita coisa mudou depois do acidente na sua forma de compor, houve a mudança de voz – o que eu acho muito interessante também, como as limitações advindas do coma transformaram a sua estética e a deixaram talvez mais expressiva, você chega a falar disso –, enfim, o que eu queria mesmo é que você contasse pra gente o episódio do coma.
Capucho – Eu acho engraçado, porque vocês, o Bruno e a Ana, não são os primeiros a chamar de acidente o meu coma. Antes de vocês eu já tinha ouvido isso de acidente. E me lembro uma vez que fui fazer uma aulas e tinha um filósofo, não sei se era um filósofo, era um cara assim famoso no meio do pensamento, que ele foi numa ponte, acho que se jogou, não sei, não me lembro bem, sei que morreu ou se suicidou, e neguinho não chamava nunca a morte dele de morte, mas de desaparecimento, se referiam ao desaparecimento da pessoa. E quando vocês falam acidente [risos], me lembra esse cara que desapareceu, mas que na verdade morreu. O que aconteceu foi que eu nunca fiz exame de HIV, porque nos anos 1990, você saber que tinha AIDS era uma coisa desesperadora, ninguém queria saber se tinha AIDS ou não; então, eu nunca fiz o exame. E eu tinha dado uma aula numa sexta-feira à noite… Sempre sexta-feira à noite, quando eu saía da aula, eu ia pra um bar ficar bebendo; e aí eu fui pra lá ficar bebendo, e aí eu paquerava e aí comecei a beber e a conversar e a olhar pras pessoas com olhos concupiscentes, e aí eu não lembro mais nada. Depois de um mês que eu acordei do coma, me contaram que a polícia me achou na esquina perto de casa, de madrugada, e me levou pro hospital, em Cachoeiras de Macacu. Ninguém disse nada pra minha mãe, os amigos tomaram conta de administrar esse fato: de eu estar no hospital; o [Marcos] Sacramento, principalmente, que administrou tudo. A primeira versão desses amigos e do próprio hospital é que eu tivesse sofrido um ataque homofóbico, porque eu tinha uns hematomas no pescoço. Aí, fui transferido pra Friburgo, eu acordei do coma lá. Depois de um mês, fui transferido para o Hospital dos Servidores. Saí do coma e tudo mais e comecei a ser monitorado por uma médica do Servidores; essa médica me deu uma segunda versão: como o meu coma tinha sido um coma convulsivo – eu tive que ser amarrado na maca por esse tempo todo de hospital, porque eu ficava me debatendo e tirava as sondas, as coisas que injetavam em mim, eu arrancava tudo – aí ela me disse que talvez eu pudesse ter tido, quando saí do bar de madrugada, uma convulsão de entrada no coma, e me debatido no paralelepípedo. Então, tem essas duas versões do acidente, mas eu não sei se foi uma convulsão ou se foi porrada. O mais provável é que tenha sido uma convulsão, porque até então eu nunca tinha sentido nenhum clima agressivo lá onde eu morava em relação a isso.
Ana Simonaci – E Luís, como você chama isso, você conta isso como um acidente ou você usa uma outra palavra pra descrever o que aconteceu?
Luís Capucho – Eu digo que entrei em coma, por conta do HIV.
“Quando eu saquei que dentro daquela coisa pequena podia sair músicas bonitas, eu senti uma alegria.”
Rafael Saar – Luís, eu já ouvi, não sei se foi de você ou de alguém que disse a você, que a sua condição nessas limitações pós-coma finalmente teriam trazido uma estética, de voz e de forma de tocar o violão, que se adequavam aos temas e às músicas que você tinha. Às vezes eu vejo, não sei se é uma viagem minha, você se referir ao Luís pré-coma como o “Luís antigo”, como se tivesse mesmo uma divisão. Queria que você falasse um pouco das músicas antes do coma; e que músicas desse período ficaram lá no Luís antigo e não cabem no Luís contemporâneo.
Luís Capucho – Eu faço música há muito tempo, né? Eu faço música desde os vinte e pouquinhos anos. No coma, eu tinha 34, 33, e durante esse tempo todo que eu fazia música, eu fui criando um método, uma forma de fazer música, e eu tinha muito pra onde ir, tanto por conta da minha voz ter mais de uma oitava, uma voz normal, como pelo fato de no violão eu ter mais agilidade, eu conseguir mais lugares – eu conseguia fazer pestana, por exemplo [risos], hoje tenho que usar o capotraste. Então, eu tinha criado todo um jeito de fazer música, que depois, quando reaprendi o violão, não me servia mais de nada. E eu me lembro, já morava em Niterói de novo, quando eu tinha dois acordes – porque desde sempre eu fui um músico ruim, eu não sabia tocar música dos outros, porque exigia uma técnica, eu pensava “já que eu não posso tocar a música dos outros, eu vou fazer as minhas músicas”, e eu fazia as minhas músicas para suprir isso, com a pouca distância que eu tinha de notas, porque minha voz ficou monocórdia, não alcançava muitas notas, ficou um pedacinho pequeno de notas tanto pra cantarolar quanto pra tocar –, quando eu saquei que dentro daquela coisa pequena eu podia fazer mil combinações e que podia sair músicas bonitas e que minha voz era uma voz interessante – eu me lembro que quando eu fiz o “Vai querer”, são dois acordes, você vê que eu faço o maior esforção,eu canto gritando, assim, do esforço que eu tinha pra fazer aquilo – então, quando eu vi que dentro daquilo eu tinha uma possibilidade grande, um campo grande, porque podia combinar um monte de coisa, eu senti uma alegria, uma coisa, que foi igual as vezes que eu ouvi as fitinhas [do Antigo] chorando. Então, até hoje tem músicas da época antiga que eu não consigo tocar. Eu acho que todas caberiam hoje, só que não ficariam esteticamente boas, porque é um jeito que era daquele jeito antigamente.
Edil Carvalho – Eu tô aqui pensando nas respostas que você deu às últimas perguntas e no vocabulário que você usou. Ora você reconhece que há um Luís antigo, mas ora você estranha que chamam o episódio pelo qual você passou de acidente. E eu vou te dizer porque eu tô parando pra pensar isso agora. Porque pela perspectiva de fora, ou seja, pra quem não é o Luís Capucho, é como se você tivesse passado por um episódio terrível, e que isso tivesse mudado radicalmente a sua vida, mas quando a gente te ouve, parece que você não pesa isso com tamanha gravidade. É desconcertante ouvir você quando fala isso, porque parece que é a gente que tá atribuindo a você um episódio muito grave, parece que é a gente que tá atribuindo a você que você mudou radicalmente, sua música e tudo. A pergunta que tenho a fazer é a seguinte: esse episódio realmente mudou o Luís Capucho? Se ele modificou, modificou no quê? Ou seja, o que do Luís Capucho permaneceu inalterado e o que efetivamente esse episódio foi capaz de mudar no Luís?
Luís Capucho – Não, você tem razão, foi um episódio, um acidente [risos] gravíssimo; foi muito grave, foi muito grave, eu saí do hospital na cadeira de rodas, não conseguia andar, tive que reaprender tudo de novo. Desde 1996 até hoje – eu só não estou me recuperando ainda por causa da pandemia, porque senão, nesse horário, eu estaria voltando da piscina, que é onde eu mantenho minha melhora – então, foi uma coisa muito grave, eu tô há vinte anos em função disso. No primeiro mês eu senti que tinha uma melhora assim, depois pra eu ter uma melhora desse tamanho eu precisei de um ano, depois pra eu ter o mesmo tamanho de melhora eu precisei de dez anos, entende? E agora, cada vez eu preciso de mais tempo e cada vez ela se torna mais minuciosa, mais pequena, a melhora, e demora mais tempo. Uma melhora que eu persegui durante muito tempo e que até hoje eu não consegui, por exemplo, foi sair correndo; não consigo ainda sair correndo direito [risos], que é uma coisa que eu quero fazer ainda.
Edil Carvalho – Eu consegui entender pela tua resposta que isso te atingiu fisicamente e que você reconhece essa experiência em sua gravidade pelo ponto de vista físico, porque toda tua resposta foi sobre limitações físicas e sobre a superação em relação ao que teu corpo sofreu. Entendo que isso atingiu teu corpo e que você até hoje luta para recuperar o movimento do corpo, tanto que teu maior desejo é sair correndo [risos], mas a pergunta que não quer calar é: tem algo do Luís que foi atingido além do corpo? Você tá falando de superações físicas e eu tô querendo saber do Luís que não é o físico.
Capucho – Tem, sabia? Eu achava que não tinha. Mas no início, quando eu saí do hospital, eu saí com os olhos arregalados. Aquilo de eu não conseguir ter o olho morto, como é o meu olho, ter aquele olho arregalado, era o sinal de que alguma coisa no meu cérebro tinha ficado estranha. Teve uma vez até que minha mãe me achou meio maluco – “você é louco”, ela disse – e eu desconfio que tem muita gente que me acha meio louco, e eu acho também que eu sou meio louco. Mas uma coisa que aconteceu de modificação da minha pessoa, do meu cérebro, assim, neurológico, eu percebi há pouco tempo. Quando eu comecei a escrever o Cinema Orly, eu comecei a escrever pra melhorar minha sintonia motora, pra eu conseguir fazer os movimento mais mínimos, de escrever, né? E eu achava que a minha sequela era só física, que eu tinha que ir melhorando essas delicadezas físicas. À medida que eu fui escrevendo o Cinema Orly foi que eu vi que o meu senso de humor foi voltando; na medida que ia escrevendo o livro e achando engraçadíssimo alguns trechos. A minha saudade, aquele tédio que eu tinha, de tomar remédio, deitar, dormir, acordar, tomar remédio, comer – era um tédio a vida –, à medida que eu ia me lembrando do Cinema Orly, eu vi que esse tédio foi desaparecendo e que eu conseguia ter ilusão, que eu conseguia fantasiar coisas; percebi então que meu cérebro, que a minha alma também tinha desaparecido. Porque o coma, assim… Você tá na vida, a vida tá aberta pra você, aí você entrou em coma, você se fecha numa escuridão. Quando você acorda, você abre de novo pra vida. E eu senti que manuscrever o Cinema Orly fez parte dessa abertura, entendeu? Eu fui novamente estofando o meu interior, as minhas emoções, eu fui novamente sendo estofado de mim mesmo. Eu acho que teve essa sequela primeira, que eu demorei a voltar com tudo que eu sou de novo; precisou desse exercício de escrever o Cinema Orly. Eu acho que foi isso. Uma outra coisa que eu acho que mudou é que eu era um cara notívago, eu não tinha hora pra dormir, adorava dormir pela manhã; aí, como eu tive que acordar pra tomar remédio cedo e tinha um último remédio tarde, eu passei a dormir 23hs e acordava cedo pra tomar remédio. Eu parei de ter uma vida de noite. Comecei a viver diurnamente.
Jacqueline Figueiredo – O Luís já me disse algumas vezes que não é um cara muito de política, de se meter em política, e tem um movimento importante que são as políticas em relação ao HIV. Hoje, a gente tem novamente uma onda de contágio especialmente entre as pessoas jovens, e, pensando num Luís dos anos 1990, jovem, que foi contaminado com o HIV, pensando também que tem uma obra que tem um antes e um depois, pensando nesse cenário, você percebe que teve um aprendizado dos seus afetos, dos seus desejos, do seu tesão, que mudou por conta de tudo isso que a gente tá falando aqui agora?
Luís Capucho – O tesão é sempre a mesma coisa, né? O tesão você não consegue modificar, o tesão é o tesão. Mas eu tô com o Pedro há nem sei, acho que doze, treze anos; é uma pessoa que eu consegui ter tesão por muito tempo. Eu não tenho consciência de porque isso aconteceu nessa minha biografia assim, com essas situações, mas mudou o meu sentido, embora o tesão não mude. Você tem o tesão. Mas eu acho que eu ganhei afeto, eu adoro o Pedro, pensar no Pedro é muito diferente.
“Eu acho que eu sou uma pessoa muito perdida.”
Jacqueline Figueiredo – E essa moçada que tá vindo agora, a gente tem uma alta de contágio muito grande, recente, e as políticas públicas enfraquecidas. Você acha que tem alguma coisa na sua obra que poderia ser dito para esses jovens no sentido de que eles pudessem manter essa erótica, mas uma erótica menos danosa pro físico, para o corpo deles?
Luís Capucho – Eu acho que não, sabe? Eu acho que eu sou uma pessoa muito perdida. A pessoa mais jovem pode me ler e me ouvir com simpatia e com agrado, entendeu? Mas eu sou muito perdido pra… sei lá, eles podem gostar, qualquer pessoa pode gostar, pode se agradar, eu sou um cara perdido.
Bruno Cosentino – Quero aproveitar que você falou do Pedro. Essa questão do afeto, vamos dizer de uma ligação com a pessoa, que não é uma ligação exclusivamente sexual, isso tá muito no seu livro Cinema Orly, no qual embora você esteja ali naquele ambiente de pura sacanagem, você sempre tá falando de ter um namorado. Eu acho que isso faz um contraponto bonito no livro, porque você tava ali para ter prazer sexual e fala disso de uma maneira muito desabusada, mas sempre tinha também em vista algo mais, ter um namorado. Por quê você tava lá pensando em ter namorado e não tava satisfeito só com a transa?
Luís Capucho – Eu falei com você que o Cinema Orly era um livro masculino e ele é um livro masculino, mas ele é um livro muito feminino também. Esse negócio de namorado é uma coisa que colocam na cabeça da gente, que a gente tem que ter um namorado. E eu achava que eu tinha que ter um namorado também, era um sonho; e agora eu tenho um namorado, e não vou mais no Orly e nem em similares.
Bruno Cosentino – Eu lembrei do “Poema maldito”, uma das partes mais lindas é quando você canta “e tenho namorado”. É uma maneira de dizer muito linda e isso tem em muitas canções suas, esse modo de cantar, muito coloquial, e várias pessoas percebem e já me dizem como é bonito essa hora que você canta meio falado “e tenho namorado”, existe uma ternura na melodia. Mas desculpa insistir: não sei se é só uma coisa que colocaram na sua cabeça – não é também uma necessidade de algo além da estrita relação sexual?
Luís Capucho – Eu não sei, porque, no fim, o Cinema Orly foi meu namorado daquela época, entendeu? Porque eu conseguia, eu e todo mundo, ter essa coisa que se tem com um namorado, ali nas poltronas do cinema; só que não era uma pessoa, era o cinema que dava esse conforto, esse calor, esse aconchego. Eu acho que o Cinema Orly foi o meu namorado. [Risos].
Edil Carvalho – Você de uma maneira lacônica soltou essa frase, “o Pedro é diferente, o Pedro é outra coisa”. Quem é o Pedro, o que é o Pedro pra você?
Luís Capucho – O Pedro é meu namorado. [Risos].
Edil Carvalho – A gente sabe, mas o que é ser um namorado?
Luís Capucho – É isso, é ter um aconchego, é ter as coisas que eu tinha no cinema, é ter uma proteção. Alguém disse uma vez que o Cinema Orly foi meio como um útero meu durante esse tempo, e o Pedro é meio esse útero, essa placenta. Uma vez eu fui ao Pará para falar do Diário da piscina, a Ana sabe, e eu senti isso na atmosfera de Belém. Aquela atmosfera úmida – é diferente daqui o calor de lá, o calor de lá é mais pegajoso, mais acalentador – eu senti que estava dentro de uma placenta em Belém do Pará. Foi o lugar mais lindo que eu fui dessa viagem. Queria até mudar pra lá.
Rafael Julião – Luís, na realidade, eu tenho duas perguntas. Muitas coisas que eu estou lendo, eu já li a autobiografia do Caetano, já li a biografia do Milton, todas elas contam um momento formativo. O Milton Nascimento vivia muito bem em Belo Horizonte quando de repente viu um filme, que é o Jules e Jim, e isso modificou ele e ele disse: “eu quero me tornar um artista, um compositor”. O Caetano tava muito bem em Santo Amaro, ouviu João Gilberto, leu Clarice Lispector, viu um filme do Fellini e decidiu que ia virar artista. Ou seja, todas essas histórias de artistas de que eu gosto contam no início da carreira deles sempre duas coisas: o encontro com algum amigo, com algum parceiro, com alguma pessoa que acompanhou os momentos formativos, por um lado, e, por outro, sempre ter ido a algum lugar – talvez o Cinema Orly seja um desses lugares formativos. Então, a minha pergunta é: o artista Luís Capucho nasceu de algum evento desse ou de alguma companhia dessa? E a segunda é a seguinte: todo mundo está propondo a divisão em antes e depois do coma ou do acidente e é engraçado que você é um artista que tem uma obra nos anos 1990, mas já estamos no outro século, no outro milênio. Quando eu fui te entrevistar, eu entrevistei você numa coisa de artistas contemporâneos [o programa “Escuta”]. Me parece que para além da história de que foi antes ou depois do coma, de repente você virou um contemporâneo, e grande parte de sua obra é do novo milênio. Eu queria juntar essas duas pontas da sua vida e que você comentasse um pouco esse início da carreira, esses momentos formativos e essas companhias. E, nessa outra ponta da carreira de hoje, do Capucho dos anos 2010, 2020, como foi essa sua entrada no mundo contemporâneo? Você foi abraçado por outros artistas mais jovens, como é que foram esses seus dois nascimentos?
Luís Capucho – Eu, quando tinha doze anos, queria ser arqueólogo, não pensava em ser artista. Eu dizia assim, “o que que você vai ser quando crescer?”, eu dizia “eu quero ser arqueólogo”. E a minha mãe, nessa época, trabalhava num hotel no centro de Cachoeiro de Itapemirim, na rua Bernardo Horta, eu acho que é o nome da rua, e eu não conheci ninguém da família da minha mãe a não ser os irmãos dela, e ela contava muito sobre a infância dela, sobre os pais dela, que eu não conheci. E eu comecei a entrevistar a minha mãe, eu queria muito saber sobre isso. Comecei a escrever uma história sobre essa infância da minha mãe, mas eu queria ser arqueólogo, eu não queria ser escritor; fiz esse livrinho, mas meu lance era ser arqueólogo. E Marapé, que é uma cidade lá perto – as minhas primeiras lembranças são de Marapé –, eu acho que é o que me formou, me deu uma organização. Por conta de Marapé ser pequena, eu conhecia todo mundo pelo nome na cidade. Era um lugar que você conseguia entender, porque você sabe que ali mora o fulano, ali mora não sei quem, é uma cidade que você entende. E eu sempre sonho com Marapé, eu sonho com o cemitério de Marapé, como se o cemitério fosse uma cidade grega, uma cidade muito antiga. E aí eu tenho Marapé como se Marapé fosse o que me formou, o meu entendimento, que é o lugar também que tinha a igreja no alto do morro. O meu entendimento primeiro das coisas tem a ver com Marapé. Eu acho que tudo que eu faço vem a partir daí, entendeu? Quando eu tinha uns 19 anos, já morava em Niterói, resolvi visitar Marapé, e aí não era mais esse lugar, não era mais o lugar da minha infância; Marapé tava toda diferente. Há três anos eu fui lá e tá mais diferente ainda. Marapé não existe mais. Inclusive, o nome da cidade mudou, agora se chama Atílio Vivácqua, que é um político lá do Espírito Santo, que foi irmão da Luz del Fuego; a Luz del Fuego é de lá também. Então, esse ambiente formador meu não existe mais. Uma vez eu fui a Paquetá e vi que Paquetá é um pouco assim, é como se Marapé tivesse ido pra Paquetá; quando eu gostei de Belém, é como se Marapé tivesse saído de Paquetá e ido pra Belém. Essa castanheira que tem aqui em frente é como se fosse um micro Marapé. Então, o meu núcleo de entendimento vai mudando de lugar, por isso que eu acho que sou uma pessoa perdida, porque o meu lugar de conforto vai mudando de lugar e eu vou indo atrás dele. Vou procurando sempre e quando eu acho ele já vai pra outro canto. Quando eu achei Paquetá, por exemplo, não tinha como eu ir pra lá também, também não vou morar em Belém. Então, eu acho que eu não sei responder a sua pergunta, porque a coisa vai andando.
“Eu queria ter uma vida assim de êxtase sempre, quase um santo. Uma coisa próxima disso é o prostituto, né?”
Rafael Julião – E eu queria que você comentasse também essa coisa contemporânea sua, com as pessoas da música de agora, que se interessaram pela sua obra e que fizeram de você um contemporâneo.
Pérola – Vou tentar complementar a pergunta do Rafael, porque no episódio da infância você fala que o importante foi se alfabetizar e escrever essas cartas. Me parece um grande evento, tanto que a sua obra e a sua pessoa como um todo está ligada à escrita e é interessante que você tenha contado esse episódio das cartas hoje, porque sua música é muito em torno de uma letra, seus livros, mesmo sua pinturas – tem pessoas, personagens ali –, suas letras são narrativas, e você também dava aula, tudo tá muito ligado a essa coisa da palavra e da escrita. Parece ser central. Qual é a importância da sua relação com a escrita e com a palavra?
Luís Capucho – Eu queria ser um cara muito lindo, assim, grande, forte, e viver de sexo. [Risos]. Acho que já tô ficando bêbado. Não, mas é sério, eu queria ter uma vida assim de êxtase sempre, quase um santo, como o santo tem uma vida de êxtase. Uma coisa próxima disso é o prostituto, né? Tem êxtase sempre.
Edil Carvalho – Acho que agora a gente viu então uma relação entre o sagrado e profano, né?
Luís Capucho – Verdade.
Edil Carvalho – Eu acho que você deve beber mais pra dar as respostas que a gente está procurando. [Risos].
Luís Capucho – Eu acho que essa coisa de dar as referências é uma coisa que me incomodou muito quando eu fiz a viagem pelo Sesc. Que neguinho só queria saber quem eu tinha lido, as minhas referências. Aí eu num…
“A vida não é o sexo, mas o sexo é o oriente, é um sol.”
Bruno Cosentino – Arriscando fazer uma leitura de você, acho que é porque você é um artista que extrai as coisas da vida, não dos livros – também dos livros, mas porque eles fazem parte da sua vida –, você é um anti-intelectual, a tua inteligência vem dos sentidos, da tua experiência com o mundo. E aí a pergunta que eu queria fazer é a seguinte: você diz nessa música do Crocodilo – eu esqueci o nome, mas é aquela que você sai na rua pra filar o cigarro de alguém [“Antigamente”] – e você canta: “dizem que a vida não é só sexo”. Quer dizer, você concorda com isso, com quem diz que a vida não é só sexo?
Luís Capucho – Eu concordo.
Bruno Cosentino – Mas você falou que queria viver de sexo, ser um prostituto.
Luís Capucho – Pois é. Porque o sexo é uma luz, o sexo é uma luz, mas a vida não é o sexo – o sexo é o oriente, o orientador, é um sol.
Bruno Cosentino – Luís, no texto do Skylab sobre sua obra, ele diz que você não tem nada a ver com seus parceiros de geração. Eu sei que você não é desse tipo que tá querendo encontrar afinidade com geração, você tem a sua trajetória singular, mas eu queria saber como é a sua relação com os seus parceiros da década de 1990, do coletivo “Ovo”, que publicaram aquela sua canção quando você estava em coma? Eles ainda estão presentes na sua vida? Queria que você comentasse sobre você e a sua geração e dos seus parceiros de hoje.
Luís Capucho – Eu tive três parceiros mais frequentes, que foram a Suely Mesquita, a Mathilda Kovak e o Marcos Sacramento. A Mathilda brigou comigo, nunca mais vi. O Sacramento é meu amigo de sempre. Ele é meu amigo mesmo, assim, de ser amigo. A Suely é minha amiga e eu sinto que ela gosta de mim e eu gosto dela, mas não tem a mesma aproximação que eu tenho com o Sacramento. Inclusive, foi o Sacramento que me apresentou a Suely e a Suely me apresentou a Mathilda. Depois, o Sacramento – a gente tinha muita afinidade mesmo, que a gente fazia música junto e tudo – depois ele teve um grupo chamado “Cão sem dono”, que era com o Paulo Baiano, que foi quem produziu os meus CDs primeiros; o Sacramento é um grande poeta, um grande letrista, e ele faz melodia agora, porque aprendeu o violão, ele toca músicas. Então, o Sacramento se dividiu entre cantor, ele fez muito disco de samba, e compositor também. A minha afinidade com o Sacramento, mesmo que eu tenha alguma afinidade musical, é muito de amigo, a gente é amigo independente de fazer música, a gente é inevitavelmente amigo. E tem o Bruno Cosentino também, que a gente tá fazendo um disco novo [risos], imaginando ainda o disco, compondo. E tem os meninos que o Bruno me apresentou. Porque o Crocodilo é um disco em que cada faixa é feita por um artista diferente. Foi concentrado no estúdio do Vovô Bebê, que acabou fazendo mais músicas, porque as músicas estavam lá. Quando ninguém quis uma música, ele pegou. Eu acho lindo o que ele fez com a “Quando é noite” e acho lindo o que ele fez a partir do que o Bruno e o baterista, o Pedro Fonte, fizeram com “Acalanto do amor”, que foi uma música difícil de ser pegada, mas que é uma das que eu mais gosto do disco. Então, tem esses outros artistas de uma geração diferente da minha que me ajudaram nesse disco. Eu acho também que a gente vai entender as coisas depois, porque é um processo, quando a coisa acaba de processar é que você vai entender o que aconteceu.
Rafael Saar – Eu já ouvi várias vezes você dizer que se considera muito menos letrista do que melodista. As pessoas têm uma impressão diferente quando te ouvem, eu mesmo tinha, de você se sentir muito mais à vontade no lugar da letra. Por que que você acha que tem isso?
Luís Capucho – Eu acho que eu sou bom de melodia e acho que eu sou bom de letra. E acho que meus parceiros são muito bons de letra. Eu tenho uma parceira, a Kali C, que ela é ótima de melodia. E eu acho que os letristas acabam predominando nas músicas, porque os letristas falam mais, se afirmam mais, e fica parecendo que a música é do letrista. Teve uma época em que eu nem quis mais letrista, eu fui fazer as minhas letras, mas só que eu demoro muito pra fazer uma letra, porque a letra me empaca, eu fico muito nela, eu acho que tem que mudar e fico mudando, eu acho mais difícil fazer letra. A melodia brota melhor, não que a melodia não tenha pensamento, às vezes você fica um tempão pensando numa melodia, se você vai pra lá ou se você vai pra cá, se você vai fazer uma voltinha aqui ou se você não vai fazer. Então, tem muito pensamento na melodia também, mas o pensamento acaba aparecendo só o do letrista. Eu acho que quando faço uma letra é porque eu aprendi com os meus parceiros letristas, e acho que eu sei fazer também.
“É diferente de você construir um prédio; quando você faz uma música é uma coisa que vibra luminosa.”
Jacqueline – Luís, qual é a hora do dia que você mais gosta pra compor?
Luís Capucho – Eu não tenho preferência. Eu acho que a hora do dia mais bonita é quando o sol está se pondo, mas eu não tenho preferência… Eu não gosto de fazer de noite, porque quando eu faço de noite – você tá muito viajante à noite – então quando você faz uma música à noite, você vai ouvir ela de dia e tá horrível, porque à noite você achou que tava linda, aquela exaltação que a noite oferece pra você, que você ouve melhor, você fala melhor, tudo é melhor na noite, a noite meio que incandesce tudo. E aí, quando você ouve aquela música de dia não tem nada daquilo, daquela fantasia da noite. Então, eu não gosto de fazer música à noite; quero fazer de dia porque tá real, entendeu?
Edil Carvalho – Luís, pra que a gente precisa de música? Por que a gente não poderia viver sem música? Pra que serve esse negócio? O que o músico faz?
Luís Capucho – Eu acho que são as coisas leves da vida, que é diferente de você construir um prédio, que é uma coisa bruta, que é diferente de você lavar uma roupa, que é um negócio que te exige. Quando você faz uma música é uma coisa que vibra luminosa. Eu acho que é por isso. Livro também. É uma outra dimensão da vida.
Pérola – Tem alguma música sua que você goste mais, que você diga assim “essa é minha preferida”?
Capucho – Não.
Rafael Saar – Você acha que a tua música tem algum sentido de representatividade? Eu tava ouvindo as tuas músicas aqui pra pesquisa do filme e tem aquelas músicas do Luís antigo e os nomes são muito objetivos, são assim: bicha, boquete, capeta; e falam de universos que eu não tinha ouvido em nenhuma música nada parecido, ao mesmo tempo que são muito próximas. A sua vontade de fazer uma música também vem da vontade de você não ter ouvido uma música que falasse desses universos e personagens e sentimentos do seu universo?
Luís Capucho – “Meu irmão”, né? Eu fiz [a canção] “Meu irmão” sem o violão, eu fiz de boca. Eu tinha ido na casa do meu irmão e quando eu entrei na casa dele – ele tinha filhos pequenos – ele falou assim: “olha, eu não gosto da maneira como você anda, eu não gosto da maneira como você fala, eu não gosto da maneira como você se veste”; e foi enumerando umas coisas que ele não gostava, e disse assim: “você não é um bom exemplo para os meus filhos, eu não quero que você venha mais aqui”. Eu fiquei tão arrasado, que eu nem esperei chegar em casa – porque o violão, quando você faz um acorde, ele te dá uma dica de pra onde você ir com a melodia – quando eu cheguei no violão, eu tirei a música, ela já tava pronta de cabeça. É uma coisa que depois eu descobri que o pessoal do funk faz. O pessoal do funk parece que não usa o instrumento, eles fazem a coisa de boca e depois colocam naquela sonzeira do funk. O “Meu irmão” foi meio assim. É uma coisa tão urgente que não tem esse pensamento de você ocupar o lugar de representatividade, entendeu, é um lance visceral.
Rafael Saar – Eu não sei se a palavra é representatividade, sinto que, num caminho próprio, você foi construir sua forma de se expressar com músicas que não fazia para um público ou para gravar, são músicas suas que diziam algo pra você, né?
Luís Capucho – Eu continuo meio assim. Eu simplesmente vou fazer uma música, não é porque não existia uma música daquele jeito.
“Eu não entendo os artistas que dizem que fazer uma música é um sofrimento, porque pra mim é a salvação.”
Bruno Cosentino – Luís, você já escreveu assim: “apesar de ser um cara para dentro, sinistro, não sou presa da melancolia (o olhar de jesus), mas da masculinidade.” Embora eu reconheça a melancolia na sua obra, eu acho ela extremamente alegre, de uma alegria vital. Já percebi em algumas pessoas uma certa empatia com o que você canta que para mim a sua canção não passa, um lance depressivo, e acho que elas se reconhecem nas suas músicas de uma maneira errada, porque elas percebem o submundo que é ali retratado, a sua voz cavernosa, o violão punk e arranhado e sujo etc., e identificam isso com uma coisa entediada, romântica e depressiva. Eu acho que é tudo ao contrário. Essa também é uma leitura muito errada que fazem de Clarice Lispector, psicologizante, depressiva, que não é, a mulher era um tesão, era um furacão de tesão com a vida – e acho que você também é. Você acabou de falar que fazer canção é leve. Você acha que sua obra é melancólica, é alegre, o que você acha?
Luís Capucho – Eu não sei, porque tem uma coisa que é o que as pessoas veem, que é uma verdade. As pessoas veem a tristeza, veem a melancolia, quer dizer, isso é verdade. Mas tem a coisa que sou eu fazendo, né? E pra mim é uma salvação fazer, é a coisa mais legal que tem, é a coisa que me dá mais prazer. Eu não entendo os artistas que dizem que fazer uma música, fazer uma poesia, é um sofrimento, porque pra mim é a salvação, é o que vai te livrar daquele estado, que vai te dar uma saída daquilo. Mas eu entendo essa visão de que seja algo triste e pesado, porque talvez esse seja o resultado. Embora na hora em que eu esteja fazendo seja o maior tesão, o maior prazer, o resultado sai aquela coisa.
Ana Simonaci – Luís, eu nunca vi ariano triste, você é do signo de áries, não é?
Luís Capucho – Sim.
Ana Simonaci – Eu acho que tem a ver com isso também. Você acredita em astrologia, você sabe seu ascendente, você gosta disso?
Luís Capucho – Olha, o Edil já fez o meu mapa. Mas eu acho que eu sou todos os signos; eu acho que eu sou áries, sou peixes, sou touro, sou câncer, eu sou todos.
Bruno Cosentino – Eu vou ceder à tentação. Edil é astrólogo. Faz uma breve leitura do mapa do seu amigo.
Edil Carvalho – Foi muito perspicaz a observação do Rafael Saar sobre uma característica do Luís, que é a repetição. Eu me lembro que quando ele compôs aquela música do cara que ele encontra na praia, e que o cara é manco, e que eles vão pra casa e o cara cai do sofá, qual é essa música mesmo?
Luís Capucho – “Poema maldito”, letra do Tíve [Martinéz].
Edil Carvalho – Então, essa música me impressiona muito pelo ritmo dela, porque me parece mesmo uma música que na realidade tenta se recuperar de algo que está capenga. A própria melodia parece a tentativa de sobreviver a um ritmo que na realidade é um disritmo. E é interessante que na primeira vez que eu ouvi a música, eu interpretei ela desse modo, eu pensei “esse cara tem que ter uma noção de ritmo, de repetição, que é fenomenal”. E tem uma configuração que aparece no mapa do Luís, que em astrologia a gente chama de Saturno na casa 6. Saturno na casa 6 vai aparecer muito no mapa de músicos, de administradores, no mapa de médicos. O que essas três áreas têm em comum e o que elas têm a ver com repetição e com ritmo? São pessoas que precisam ter uma noção muito clara de como se deve juntar as partes para montar a harmonia do todo; ou seja, é alguém que vê a vida como um quebra-cabeça, cujo encaixe vai dar o resultado desejável. Não foi à toa que o Rafael percebeu que uma característica da obra do Luís é a repetição; e, mais ainda, de alguém que aprende com aquilo que se repete na vida, como se a vida fosse um diário, porque a atividade diária e constante é aquilo que dá a você a noção de mestre. Luís disse nessa entrevista: “a repetição é um mestre”. Nesse caso, Saturno tá lá como um mestre na casa 6, mostrando que a repetição é uma grande lei a ser seguida. Essa seria a leitura que eu faria do mapa do Luís.
“Eu adoraria poder chegar ao final desse processo e não só tocar num videozinho caseiro que eu coloco no Youtube.”
Bruno Cosentino – Só pra fazer uma outra observação. É que quando após o coma, com os recursos limitados no violão e no canto, Luís falou que se divertia muito porque descobriu que com dois acordes podia fazer muita coisa, essa também é uma característica comum à repetição, porque se você faz sempre “As vizinhas de trás”, é uma delimitação que se cria, é agir num espaço pequeno, deliberadamente com poucos recursos, jogando muito bem com o pouco que se tem. Por isso, a repetição também tem a ver com o Capucho pós-coma, que repete aqueles poucos movimentos que tem, aproveitando-os ao máximo, e com isso constrói muita coisa. Mas deixa eu te fazer uma pergunta. Quando você recebeu aquele prêmio na prefeitura de Niterói, qual foi mesmo, prêmio Arco-Íris ou cidadão de Niterói?
Luís Capucho – Eu recebi dois prêmios. Um que foi o Prêmio Arco-Íris [de Direitos Humanos], em 2005, e o outro foi a medalha Antonio Candido, eu acho que era.. José Cândido de Carvalho [destinada a quem contribui para o enriquecimento e a promoção da cultura em Niterói] . O Julião deve saber o nome do escritor, é um cara de Campos.
Bruno Cosentino – Eu fui a essa celebração, acho que até cantei uma música com você, o Edil tava lá também, estavam uns amigos seus. E ali eu fiquei pensando em como é admirável – e isso faz parte, dentre outras coisas, do proque eu admiro você – por construir uma carreira íntegra. Você não para de fazer suas coisas, você faz do seu jeito – não cabe nem falar em fazer concessões, porque você faz as concessões para você próprio, porque é muito transitivo também, como você falou aqui na entrevista, não tem uma personalidade combativa, subversiva, e isso tem a ver com o estranhamento com que a gente recebe sua superação do coma, quer dizer, você aceita as coisas, ainda que sem nenhuma passividade, você sabe receber as coisas e fazer delas a sua vida, e isso é uma saúde, uma sabedoria do corpo, o se moldar a elas – mas tudo isso pra dizer que você faz seu trabalho há muito tempo e você vai aos poucos sendo reconhecido, já foi gravado por artistas de muito prestígio e alcance, e ao mesmo tempo você não consegue ganhar muito dinheiro com o seu trabalho. Eu queria saber se isso é harmonizado dentro de você; como você lida com isso?
Luís Capucho – Eu sou aposentado pelo Estado [do Rio de Janeiro]. Então, eu consigo pagar o meu aluguel e comer. Isso pra mim já tá bom. Eu adoraria que, além de ter dinheiro pro aluguel e ter dinheiro pra comida, eu tivesse mais dinheiro pra fazer um empreendimento em que eu chamasse uns músicos, chamasse uma pessoa entendedora de cultura que administrasse uma agenda e eu pudesse ensaiar e sair por aí apresentando as músicas; tipo, poder chegar ao final desse processo e não só fazer a música e tocar num videozinho caseiro que eu coloco no Youtube, entendeu?
“Eu acho que o meu tamanho é esse.”
Bruno Cosentino – Eu fiz a pergunta de uma maneira errada, porque não é só a questão de você não receber materialmente por aquilo que você faz e faz tão bem, mas também de não conseguir um reconhecimento maior, de a música que você faz não chegar a mais pessoas. Eu sei que a recepção hoje é totalmente fragmentada, ninguém tem mais o que os artistas da década de 1960, 1970 (os poucos que entravam) tinham, via televisão e rádio. Mas tá bom pra você assim? Ou existe alguma ponta de insatisfação, do tipo “eu queria que mais gente ouvisse as minhas músicas”? Ou você entende a coisa e é assim mesmo que funciona?
Luís Capucho – Eu gostaria mesmo é de ter esse empreendimento, ter esse investimento, que é uma coisa que eu não faço. Eu acho que aí a coisa teria um finalmente, entendeu? Agora, com relação a participar mais, não, eu acho que o meu tamanho é esse. Eu acho que tá legal. Só não tá legal essa parte, de ficar uma coisa reduzida, que eu não possa andar com isso. Não sei também se eu ia aguentar, né? Ficar indo pra lá e pra cá pra tocar música. Mas eu gostaria de experimentar isso.
Jacqueline Figueiredo – Pensando nisso que o Bruno está falando, Luís, de expandir a sua obra, eu me lembrei das nossas conversas sobre as produções acadêmicas que estão sendo feitas sobre a sua obra. Eu estou estudando você na psicologia com a educação, e tem mais uma galera que está fazendo isso tanto da perspectiva das ciências sociais como da literatura. Então, de alguma maneira, parece que a sua obra está se esparramando por algum canal. Como você vê isso, a sua obra a partir dos estudos na universidade?
Luís Capucho – Você sabe que tem um cara estudando Luís Capucho, não só Luís Capucho, estudando a literatura HIV na América Latina, ele é um cara da Universidade de Pittsburgh, e ele está estudando alguns outros autores também; brasileiro sou eu, tem um argentino, Néstor [Perlongher], um cara que viveu aqui no Brasil também. E tem um outro garoto da Universidade Loyola [Marymount, em Los Angeles, Califórnia] também estudando. No Brasil, tem em um monte de estados, que eu fico sabendo, as pessoas me procuram, especialmente os livros, por conta da questão Queer, né? Eles chamam de Queer. Eu acho lindo isso de ver que tem gente em tudo que é lugar pensando a mesma coisa. Aí vem o lance da representatividade que eu tava falando com o Rafael, que não é uma coisa que eu tive a intenção, mas que eu vejo que isso representa um monte de gente, tem um monte de gente que tá com as mesmas questões. Então, é uma coisa bonita, que eu faço parte desse tempo, das questões contemporâneas, de identidade.
Jacqueline Figueiredo – Obrigada, viu, Luís.
Luís Capucho – Eu queria agradecer a vocês a companhia no isolamento, isso de vocês se envolverem com as perguntas. Espero ter sido suficiente. Eu adorei mesmo.
[Após todos terem desligado o Zoom]
Luís Capucho – Tinha uma pergunta que você não fez, pra que eu tinha imaginado uma resposta superbacana. Você pega um período de um parágrafo do Cinema Orly que diz “ou isso ou isso ou isso”, e você diz que não têm síntese [o trecho é: “talvez amor e sexo por serem grandes não possam ocupar o mesmo lugar no coração, ou, quem sabe, o sexo me tira a atenção do amor que deve haver na interpretação canastrona dos atores pornográficos ou, talvez ainda, o amor esteja neles e não na interpretação e eu é quem passa ao largo, porque tenho a expectativa de um amor de novela”; a observação de que não há síntese é de Rogério Skylab, no ensaio O sublime na obra de Luís Capucho].
Bruno Cosentino – É, eu lembro disso.
Luís Capucho – E eu lembrei de uma coisa superlegal, que faz parte dessa organização que o Cinema Orly me deu de novo. Porque esse lance de “ou isso ou aquilo ou aquilo” cerca por todos os lados. Ao mesmo tempo que você não sintetiza, você cerca por todos os lados. Então você faz um círculo. E a narrativa do Cinema Orly, semanticamente, é circular, os caras ficam circulando lá dentro, eu vou e volto no cinema; termina comigo de novo entrando. Então, tem toda essa coisa circular. E eu me lembro de ter visto – você tá gravando? – eu me lembro de ter visto um documentário sobre a Nise da Silveira, que aqueles malucos que foram pintar e viraram artistas pintaram muito mandalas, que era uma forma de se organizarem, de se acharem outra vez como uma coisa inteira. Eu descobri depois, eu até falei numa das respostas, que o Cinema Orly meio que me recuperou mentalmente, ele me reorganizou; eu comecei de novo a sentir tristeza, a ter humor, a ter angústia, a sair do tédio. Então, esse movimento narrativo da mandala circular meio que funcionou como a mandala do Museu do Inconsciente [“Museu de Imagens do Inconsciente”, fundado em 1952, por Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, é um centro de estudos e pesquisa na área da saúde mental]. E eu tava contando isso pro Pedro e pensei uma outra coisa. Que o Cinema Orly, eu tenho ele como um livro masculino, mas o lance da mandala, circular, é superfeminino, é um buraco. Então, eu achei superlegal. Pra mim foi uma descoberta, porque essa sua pergunta me fez descobrir um modo de me organizar ali, que já era uma coisa que eu tinha pensado antes. Tem a ver com esse movimento circular, de “ou isso ou isso ou isso”, cercar pelas beiradas.
Ana Simonaci é curadora, escritora, editora e pesquisadora. Diretora da editora Revistas de Cultura, publica coleções de livros sobre cultura brasileira no Brasil, Portugal e USA, como as coleções Cadernos de Música, Cadernos Ultramares e Revista Expressa. É autora do livro de poemas Voo (2017).
Jacqueline Figueiredo é psicóloga clínica, mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – (Unesp). Realiza a pesquisa intitulada “Cheio de vida, o lume do nosso coração se acende: a vivência com HIV a partir de encontros com Luís Capucho”.
Rafael Julião é professor, poeta e pesquisador de canção popular brasileira. Em 2014, publicou o livro de poemas Terra. Nos anos seguintes, os livros Infinitivamente pessoal – Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017) e Cazuza – segredos de liquidificador (2019).
Rafael Saar é realizador audiovisual com um trabalho que dialoga cinema e música brasileira. Dirigiu curtas-metragens, entre eles Depois de tudo e Homem-ave, com Ney Matogrosso, e o filme documentário Yorimatã, sobre a dupla Luhli & Lucina. Atualmente realiza dois projetos de filme: com Luís Capucho e Baby do Brasil.
Pérola Mathias é editora da revista Polivox, pesquisadora de música contemporânea e autora do projeto Poro Aberto, que dá nome ao blog de crítica musical, ao programa apresentado semanalmente na rádio on-line antenAZero e à curadoria e produção de shows mensais em São Paulo – e esporadicamente no Rio de Janeiro. Também escreve para o perfil de crítica de canção no instagram “Resenhas miúdas”.
Bruno Cosentino é cantor, compositor, criador e editor da revista Polivox. Em 2012, lançou seu primeiro álbum com a banda Isadora. Desde então, em carreira solo, terá lançado este ano quatro discos: Amarelo (2015), Babies (2016) – este em parceria com a banda Exército de Bebês –, Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer (2017) e Bad Bahia (no prelo).
Edil Carvalho é astrólogo, autor do projeto Astrologia & Cinema: Uma Cosmovisão e do site Coordenadas Celestes. Doutor em filosofia antiga pela UFRJ, com enfoque no uso da matemática na música, cosmologia e política. Amigo de Luís Capucho desde a juventude, quando andava com um livro sempre por debaixo do braço e Luís com um violão.