Voz bandeira, de Marina Íris

1

Voz bandeira (2019) é o nome do terceiro álbum solo de Marina Íris. Em seus discos, nomes, pessoas, vozes, bares, ruas, esquinas, placas, trânsitos, narrativas e bandeiras estão por todos os cantos.

2

Logo no primeiro disco, que leva seu nome, Marina Íris (2014), a questão-chave já se anuncia: a voz é gesto ou é gestação? (“Estreia”). No segundo, a canção-título de Rueira (2018), sentencia: eu falo o que acho/ levanto bandeiras/ sou beira de calçada/ eu sou (“Rueira”). Em 2019, as pontas de seu trabalho se unem e se atravessam; tecido de muitas vozes, Voz bandeira apresenta uma artista que se define: sou voz bandeira, rueira à vera/ feita do barro, vou do chão ao vendaval (“Voz bandeira”).

3

Como quem é mesmo é não sou, Marina Íris tanto diz que é como não: nega reiteradamente qualquer identidade imobilizadora; movimenta-se na roda, desliza, corre pelo rio-rua. “Voz bandeira” diz: sou masculina, sou feminina/ minha sina é transcender o habitual, e conclui: canto pra libertar corpo, alma, prazer. No mesmo passo, “Pra matar o preconceito” afirma: Sou criola, neguinha, mulata e muito mais, camará/ Minha história é suada igual dança no ilê/ Ninguém vai me dizer o meu lugar. Assim, quanto mais afirma o preto, mais tons desfila: segura a bandeira da liberdade.

4

A bandeira se tece de nomes-vozes, lugares de origem e de fim no agora, matrigestão do canto, a voz é ancestralidade. Por isso, suas canções evocam, convocam, invocam, citam e homenageiam. Convicção ubuntu do sou-somos. Marina Íris diz quem é: diz que é ela mesma, o que quer dizer também que é a atriz Zezé Motta, a artista Leci Brandão, a bailarina Mercedes Baptista, a judoca Edinanci Silva, a saltadora Aida dos Santos, a afrocivilizadora Tia Ciata, a rainha Clementina de Jesus, a ialorixá Mãe Beata, a intérprete Aracy de Almeida, as libertadoras Dandara e Luisa Mahin, as escritoras Conceição Evaristo e Carolina de Jesus, a multiartista Elisa Lucinda, e a heroína Marielle Franco, presente na placa, na voz das ruas, dentro de nós.

5

Bem no meio das 11 faixas, a artista faz uma gravação memorável do samba campeão da Mangueira de 2019, cantada no calor da hora, “História pra ninar gente grande”, que tem entre seus compositores a Manu da Cuíca, tão central para a obra de Marina Íris. A gente canta junto: eu quero o país que não está no retrato, Brasil, chegou a vez/ de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês, dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões. E lá está ela, a própria Leci, em dueto, lhe dando a bênção, dizendo de sua voz: Marielle, presente. As luzes de Marina Íris, as cores da Mangueira, desfilam triunfantes, na bandeira verde-rosa “Índios, pretos e pobres”, todas essas mulheres renascendo na avenida, acalentando a certeza de que nós vamos sobreviver ao horror.  

6

A arte da capa é de Leandro Vieira, o carnavalesco que sonhou o carnaval da Mangueira de 2019, e o mesmo que disse que Marina Íris tinha uma “voz bandeira”. Nela, a imagem grafitesca imprime em p&b a cabeça da cantora, signo de imagem-resistência, voz no muro, o cabelo-coroa, o rosto e um recorte em círculo na base da garganta, abaixo do qual se inscreve: VOZ BANDEIRA, preto e vermelho, a voz da rua.

Capa do álbum Voz bandeira, de Marina Íris.
7

O disco começa hasteando a “Voz bandeira” (Marina Íris/ Raul Di Caprio), samba-manifesto que orienta o percurso. Aí vem “Travessias” (Ana Costa/ Carolina de Jesus/ Manu da Cuíca), que parece ela mesma atravessar gêneros – choro, samba-de-roda, baião, aquática e terrestre, caminhante: a travessia é nosso lugar.  A incidental citação de Quarto de despejo de Carolina de Jesus na voz de Elisa Lucinda: E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro. Na sequência, a voz-escritora de Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor, conta a travessia de Kehinde-Luiza, o nome no coração de tudo. Fecha a sequência o toque reverente a Nanã, “Velha Senhora” (Leandro Fregonesi/ Teresa Cristina) orixá mulher, mãe-avó, guardiã da fronteira e da memória, nascimento vida e morte, ela também de dois nomes, Santana-Nanã, saluba!

8

Depois, anuncia-se o samba-pandeiro vadio “Carnaval de rua” (Manu da Cuíca/ Thomaz Miranda), um pedaço de samba esquecido na boca, que já emenda no carnaval de avenida, Mangueira chegando no samba-enredo “História de ninar gente grande” (Danilo Firmino/ Deivid Domênico/ Luiz Carlos Maximo Dias/ Manu da Cuíca/ Márcio Bola/ Ronie Oliveira/ Silvio Moreira Filho, Tomaz Miranda). Do samba ao silêncio, da viandância ao submerso, a voz-mulher-negra-senhora de Conceição Evaristo tremula firme os versos “Da calma e do silêncio”, a palavra retida no adentro da íris.

9

Dali vamos às “Onze fitas”, canção de Fátima Guedes imortalizada pela voz-potência de Elis Regina. São 11 tiros pelos jornais, e mais 11, e tantos 11 tiros nessa cidade assassina, Ogum que proteja a todos. Os tiros tocaram muitos corpos, muitos deles pretos, muitas delas mulheres, acertadas em si e nos seus, mas jamais silenciadas. Sempre haverá outras vozes feitas das delas. Nelson Mandela morreu bem velhinho e não foi de tiro, “Madiba!” e grita irmanada Elisa Lucinda, a poeta-atriz.

10

Na despedida do disco, “Mana que emana” (Bruno Barreto/ Thiago da Serrinha) conjuga sonoridades marcadamente africanizadas e as vozes de Marina Íris e Marcelle Motta, mana que participou do coletivo ÉPreta (2017), o mesmo onde se gravou pela primeira vez a canção que encerra Voz bandeira, “Pra parar o preconceito” (Manu da Cuíca/ Raul Di Caprio). Esse final completa o ciclo e retoma o início. O disco não acaba, recomeça, adivinha o passado e descobre o futuro, uma bandeira-voz que vai crescendo enquanto tece o fio da história, mar e subterrâneo, negritude e arco-íris, o milagre da voz no corpo, da voz na rua, da voz no muro, das vozes na voz.

Rafael Julião

É professor, poeta e pesquisador da literatura e da canção popular brasileira. É também autor dos livros Infinitivamente Pessoal: Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017) e Cazuza: segredos de liquidificador (2019).

Comments are closed