O texto a seguir, escrito por Pedro Cazes, foi publicado na edição #2 da Polivox, em 2014, e posteriormente selecionado para compor a coleção “Ensaios brasileiros contemporâneos”, editada pela FUNARTE, no volume dedicado à canção.
Lançando em pílula, palpite, uma ideia que pudesse nos ajudar a responder “onde estamos?”, eu tentaria pegar um desvio da forma ao afeto para, quem sabe, voltar àquela por final. Percorrendo essa pista paralela, talvez uma pista mais aberta à intuição do que à racionalização, eu sugeriria que poderíamos montar um quadro de leitura da canção brasileira contemporânea em torno dos pólos agressividade e dispersão. Se, por um lado, nada garante que o ponto de chegada desse caminho se sobreporia perfeitamente ao do debate sobre a forma, por outro lado ele pode ajudar a indicar uma certa (inde)cisão na subjetividade de nosso tempo em mutação, que é o que interessa ao fim e ao cabo. (obs. antes de sociologismo barato, pedir isso à produção artística contemporânea é, a meu ver, a maior consideração possível).
Como não temos tempo para demonstrações rigorosas, somente para descrições e indicações sumárias, vamos direto ao ponto. De um lado, seria possível percorrer os diferentes artistas que têm recuperado esse afeto, tão fundamental da política e da libido, que é a agressividade. E aqui não se trata de mera violência narcisista ou estetizada – pelo menos esse é o desafio… Plasmada em uma diversidade de formas, desde as mais vertebradas, prenhes de desenvolvimentos e coloridos, até as mais primitivas e minimalistas, trata-se da recuperação de uma força, de uma assertividade – que, nessa altura do campeonato, só pode vir vestida de negativo – de quem olha o presente de olhos abertos, sai da bolha e tenta estar à altura dos acontecimentos, monstruosos ou não (aliás, o dado principal é que voltou a existir algo a ser decifrado, vivido e disputado).
No primeiro caso, penso sobretudo em Thiago Amud – de quem já falei aqui –, mas também em muitas outras coisas, como essa grandiosidade que é Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz, certamente o maior acontecimento na música instrumental brasileira dos últimos tempos. Trata-se aqui de compor com a dificuldade que pode causar nos ouvidos algum estranhamento, que possa romper o anestesiado, tendo ainda o desafio de desenvolver os caminhos semi-saturados da tradição musical brasileira. Estamos falando, portanto, dos caminhos mais “cabeçudos” dessa agressividade que não se encabula de mexer com o vespeiro de grandes vultos da nossa canção, de emulá-los, de lidar com esses fantasmas. A violência da saturação de todas as possibilidades formais, que aliás parecem todas abertas e – isso, o mais importante – acessíveis, contemporâneas. Essa música brasileira segue entortando melodias e harmonias, sobrepondo ritmos e tempos, numa violência “barroca” (para usar esse topos perigoso), rebuscando a canção popular como um ourives que, liberto de certa expectativa (aquela de quando existia um Público e, logo, circulação comercial), pode forjar seus monstros do tamanho de seus estranhos sonhos musicais. Por aqui vê-se como essa vertente parece ainda não ter cortado o cordão umbilical com aquela grande tradição moderna do Tempo, aquela das grandes transformações, ou melhor, das grandes Expectativas. Aqui continua o trabalho sobre a matéria como lastro fundamental, explorando suas resistências e conduzindo seu infinito desenvolvimento em desdobramentos por caminhos cada vez mais tortuosos, quiçá labirínticos (a certeza teleológica da grande Resolução, essa sim, saiu do mapa).
No segundo caso, penso em Racionais MC’s, Negro Léo, Metá Metá, e uma pá de grandes que, de certa forma, se mantiveram em formas primitivas, baseadas na força de uma repetição que envolve – ritual. Temos aqui, desde a revalorização de tradições rítmicas brasileiras (como é o caso do excelente trabalho de Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França) até a batida seca e quadrada do rap. O segredo aqui é andar no gume da faca, aproveitando a repetição como ponto de encontro entre uma força ritual “primitiva” e as possibilidades abertas pela comunicação com a música pop. O risco de cair pro lado da dissolução no pop é, claro, o da despotencialização. Não à toa, alguns herdeiros ‘tardios’ do tropicalismo conversam hoje com uma cena experimentalista capaz de recuperar uma violência original do rock e da improvisação “free” (no caso meio mambembe, meio esculachada, suja) liberando uma agressividade represada, mas sem direção certa, travada como um bug de computador. (O equilíbrio, a clareza e a ironia de “Jovem Tirano Príncipe Besta”, de Negro Léo, seduziram de imediato, quando, em 2011, profetizaram o que estava por vir dois anos depois). Mas, sem dúvida, os mestres aqui estão no rap, que soube encontrar na fórmula mínima do sample a plataforma de uma verbalização reprimida, de uma voz que se lança ao mundo – daí um certo desejo do universal (veja o alcance de “Jesus Chorou”, com sua relação entre o sample de cordas, que nos eleva ligeiramente do chão com sua tensão harmônica, a batida seca e dura que cria o contraste e o peso, e a poesia definitiva de Mano Brown, uma conversa interna que é ao mesmo tempo um acerto de contas com o mundo inteiro). Como não sou nenhum grande conhecedor; gostaria somente de chamar atenção para o sample convulsivo de “Mil faces de um homem leal (Mariguella)” que parece formalizar esse curto-circuito, essa crise sem resolução em que estamos metidos. (É claro que o rap já era contemporâneo desse mundo que estamos começando a viver mais intensamente; afinal, não precisamos lembrar outra vez da Tese VIII de Benjamin, tão mal interpretada pelos liberais de plantão da vez, tadinha dela…). Seguindo outra possibilidade, valeria falar da busca por uma pulsão rítmica agressiva, já traduzida pelo rock e pela eletrônica, que vibra selvagem nos discos do Metá Metá, fazendo os nomes de exus e orixás circularem novamente entre os rostos imberbes da nossa juventude. Existe aqui a busca por um Brasil menos domesticado, menos pasteurizado, que se move inclusive através da revalorização de uma tradição forte da música negra, do popular em estado bruto, e com o qual se entra em contato, senão for forçar demais a barra, ritualmente, emulando e reencontrando uma identidade que havia sido esquecida.
A bifurcação que essas possibilidades montam, entre labirintos e curtos-circuitos, certamente diz algo do nosso tempo em mutação, meio nem lá, nem cá, entre não saber exatamente pra onde mais levar essa gigantesca tradição da qual ainda nos sentimos parte e já estarmos sempre precipitados num agora para o qual nos sentimos constantemente despreparados. A síntese talvez sugira algo desses grandes acontecimentos sem desfecho, como nas grandes manifestações, aquilo que Paulo Arantes tem chamado de “conjuntura perene”, e que não deixa de ser a crise aberta vivida como condição normal. O que estou tentando sugerir é que a confluência dessa mudança de conjuntura moral que atravessamos nos últimos tempos, sobretudo desde o chute na porta das manifestações de junho – o reencontro com alguma coisa primordial que parecia perdida –, e a valorização da agressividade na produção contemporânea não é aleatória. É claro que ela não tinha sumido, mas a questão é o sentido que, de certa forma, ela só pode ter plenamente nesses tempos que temos vivido. Ou que pelo menos a faz sair da mera esfera da “estética”. E vale lembrar que aqui ainda não estamos discutindo a direção que esse afeto pode tomar…
No lado oposto da polarização estaria uma certa dispersão característica do estado de “deriva” do qual falavam os Wisnik e Nestrovski, quando esquadrinhavam a experiência histórica que parecia estar na base da “canção expandida”. Com uma sonoridade meio cool, meio contida, artistas como Céu, os ex-Los Hermanos (Camelo e Amarante), Moreno Veloso, dentre outros, parecem imbuídos dessa espécie de baixa intensidade errática, de um certo “descompromisso” estetizado, buscando quase um apagamento ou diluição do sujeito na paisagem sonora. Salvo engano, a relação dessa estética da dispersão, distensão, dissolução com o estado meio “normalizado” em que todos nós, mal ou bem, estamos vivendo é mimética – ela é de fato uma “trilha sonora” do estado avançado de uma decomposição suave. Já há muito tempo Marcelo Camelo fala em compor como quem “esquece de si”, sem pensar, sem ter intenção objetiva, a obra como pura extensão do ser absolutamente comum que foi alçado ao altar da autenticidade que resta… (Se no primeiro disco solo, o caminho ainda parecia promissor, o retrocesso ao pop mais básico parece ter pervertido tais promessas). O disco recente de Rodrigo Amarante parece levar ao ápice essa busca da dissolução, do vazio, do espaço em branco, do silêncio – e com canções simples, quase indistinguíveis umas das outras, que vão passando sem grandes choques ou alterações. Mais do que um disco introspectivo, o trabalho de Amarante colocou no seu centro a interrogação sobre si, ou melhor, sobre o duplo identitário (não à toa, o disco de uma “celebridade” em retiro, ou exílio voluntário) – trilhando um caminho comum nesta seara que é a busca de uma dessubjetivação silenciosa. O curioso é que, se é em torno desse estranhamento de si que parece girar o que de mais interessante estará a vir, é espantoso como esse diálogo interno de Rodrigo Amarante é pouco conflituoso ou pelo menos pouco expansivo, forte. Como a nostalgia branda da textura embolorada do super-8 que colore um de seus clipes, o seu personagem tem algo da Joe da primeira parte de Nymphomaniac: aquela incapacidade de sentir alguma coisa parece a situação normal de nossas existências feitas de imagens (o cinema contemporâneo tem acumulado esses personagens “vazios”, que não conseguem nenhuma aderência ao “real” num mundo totalmente ascéptico ou puramente virtual). É por traduzir esse estado “desdramatizado” da existência normal em uma sociedade totalmente “administrada”, que essa vertente é, ela também, contemporânea – e até bem pouco tempo parecia insuperável.
A tentação é grande em organizar esses dois pólos de acordo com a lógica das temporalidades distintas, umas mais avançadas e “contemporâneas” que outras, tão característica do nosso raciocínio moderno. Até porque desde sempre aprendemos que a vanguarda é aquela que detém o segredo do encontro explosivo entre essa temporalidade que “virá” e o tempo das pessoas comuns. Mas prefiro deixar essa resolução em suspenso, optando por ver nessa conjunção dos comandos de agredir e dispersar a própria imagem das massas que ensaiam pelas ruas um novo começo.