ANDRÉ MIDANI

Pauta: André Kano, Arthur Nogueira, Bruno Cosentino, Frederico Coelho, Paulo da Costa, Patrícia Palumbo e Philippe Baptiste.
Ensaio fotográfico: Ana Alexandrino. Vídeo: Diogo Cunha e Philippe Baptiste.
Áudio: Philippe Baptiste. Edição de imagens: Laura Patiño Casasfranco.

André Midani nasceu na Síria, mas cresceu na França. Escapando da Guerra da Argélia, chegou ao Brasil, por acaso, em 1955, na última escala do navio que tinha como destino Buenos Aires. Encantado com a beleza da baía de Guanabara, desembarcou na cidade para dali a alguns anos se tornar diretor artístico das principais gravadoras do país e o homem mais influente da indústria fonográfica brasileira. Responsável pelo lançamento de álbuns clássicos, como “Tábua de esmeraldas”, de Jorge Ben, e “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, entre outros, André Midani foi personagem decisivo atuando nos bastidores de movimentos musicais que pautaram a dinâmica da música brasileira desde a Bossa Nova, passando pela MPB e Tropicalismo até o Rock-B, nos anos 1980. Midani recebeu a equipe da Polivox em sua acolhedora casa no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, para uma longa e prazerosa conversa. Do alto de seus oitenta e poucos anos – hoje aposentado -, mostrou seu profundo conhecimento do mercado musical, aliado a uma rara sensibilidade artística, e refletiu sobre temas complexos, como os novos hábitos de consumo, a superestimação da tecnologia, a influência dos ídolos do passado nos jovens artistas; se emocionou ao falar de seu amigo Erasmo Carlos e fez uma mea culpa ao passar a limpo sua bem-sucedida carreira.

Fotografia de Ana Alexandrino. 

CHEGADA AO BRASIL

Polivox – Midani, você ouve música hoje em dia?

Midani – O tempo todo. Ouço músicas que eu já conheço fazendo outra coisa e ouço músicas que eu não conheço, sem fazer outra coisa. Recebo pela internet, de pessoas que querem mostrar o seu trabalho, recebo CDs, enfim… Compro discos… Não sou um bom pirata, não. Mas eu penso que eu ouço música o tempo todo.

Polivox – Que música você ouve?

Midani – Olha, eu tenho estado muito com música clássica, música de jazz, que eu tô recuperando na minha vida, e música brasileira.

Polivox – Você tem iPod?

Midani – Não. Eu não quero ouvir música fazendo outra coisa. Por exemplo, dirigindo o carro, andando de bicicleta. Ipod não é um meio favorito meu dentro das novas tecnologias.

Polivox – Sua primeira inserção no mundo da música foi tocando bateria…

Midani – (Interrompendo) Ilustre baterista!

Polivox – Em algum momento, ter de abandonar a ideia de seguir a carreira de músico foi frustrante para você?

Midani – Não, de jeito nenhum. Porque, vamos dizer… São duas maneiras de olhar a bateria. Se você olha do lado francês, eu talvez fosse um baterista razoável, de boa técnica. O swing não era tão importante lá, naquela época. Quando eu desembarquei no Brasil, vi os garotinhos batucando e entendi que não tinha futuro eu como baterista no Brasil. Então, não tem frustração não. Porque se a gente olha com uma certa perspectiva, eu não teria sido um grande baterista. Eu acho que me dei melhor trabalhando com os artistas na chamada indústria fonográfica do que se tivesse sido baterista.

Polivox – Sua decisão de ficar no Rio foi tomada pelo deslumbramento causado pela beleza natural da cidade. Você já parou para pensar que a sua história pessoal e profissional em muito foi decidida por aquele impulso? Além da beleza do Rio, que outras motivações você encontrou no Brasil para decidir que aqui seria o lugar onde gostaria de viver e trabalhar? Quais foram as dificuldades e facilidades que você encontrou no Brasil na tarefa de fazê-lo seu lar?

Midani – São duas partes. Primeiro, a do deslumbre e, depois, a do pânico. Porque, na realidade, o que eu percebi depois, quando eu aterrissei aqui, que eu tive o meu quarto no hotel, que andei na (Avenida) Rio Branco para ver como era esse país, eu comecei a perceber que eu não falava a língua, que eu não conhecia ninguém, que eu não tinha muito dinheiro para poder aguentar meses sem ter um trabalho. E, como eu digo no livro, a estrutura social que dava para perceber de imediato fazia com que eu não ficasse deslumbrado muito tempo. Logo, logo pensei em coisa séria, no sentido de encontrar um trabalho para sobreviver, né? E eu nem sabia, na verdade, se tinha companhias de disco aqui no Brasil. Ou, se tinha, quais eram, qual era o tamanho, qual era o empenho, enfim… Se era uma indústria que realmente funcionava ou se era uma indústria muito amadora. E, na verdade, eram as duas coisas ao mesmo tempo. Era uma coisa muito pequena, muito amadora, mas muito empenhada. Então, foi uma sorte enorme, sabe… Hoje em dia, por exemplo, quando eu penso nessa minha chegada, eu realmente penso que foi uma loucura tomar essa decisão que eu tomei. Hoje a comunicação dos territórios, das culturas, tudo se aproximou em demasia. Naquela época, estar no Brasil era como estar no planeta Marte.

Polivox – Você se sente brasileiro?

Midani – Sim, me sinto. Ou seja, me sinto intimamente brasileiro e intimamente francês ao mesmo tempo. Eu acho que é um ganho, não é ser ou um ou outro. Eu tenho o privilégio de ser os dois. Quer dizer, quando eu saio da França para vir aqui, eu tenho saudade da França. Quando eu saio daqui para ir para a França ou a outro lugar, eu tenho saudade do Brasil. Acho uma situação extremamente rica, no sentido emocional. É muito bom.

Polivox – O que tem de Brasil em André Midani?

Midani – Não foi um amor à primeira vista. Mas, à medida que eu ia trabalhando, à medida que eu ia me enfronhando, à medida que eu ia participando e, à medida também que eu ganhava um poder maior de decisão e investimento, não resta dúvida de que eu me senti, paulatinamente, cada vez mais brasileiro. Intimamente brasileiro. Sempre houve uma dicotomia, se pode dizer, entre o meu desejo e, às vezes, a desconfiança das pessoas que alimentavam o meu desejo. Ou seja, levou muito tempo para que esse personagem Midani, que tinha chegado ao Brasil de uma maneira esquisita, que tava trabalhando nessa multinacional… “Será que ele tava ali para trair a música brasileira?”, o que era uma acusação muito forte que se fazia pelas gerações anteriores de música. Então, eu tive que me segurar com isso e, sobretudo, não ter nenhum rancor com isso. Ter paciência. Porque eu sabia o que eu queria… Não, eu não sabia o que eu queria, eu sabia o que me atraía. Eu sabia que o que me atraía, era uma coisa muito boa. Porque você sabe, tem uma coisa que outro dia eu tava refletindo sobre isso. Quando você é jovem, a realidade é abstrata. O que é realidade são os sonhos. Então, eu vivi essa coisa. Pra mim, a realidade de chegar aqui, essa realidade era uma coisa abstrata. O que realmente contava era o sonho. Um sonho que não era brasileiro ainda, mas era um sonho animado pelo desejo de participar de uma maneira idônea na música. E, circunstancialmente, foi a música brasileira, por esse raio de navio que apareceu por aqui.

INTUIÇÃO E CARTESIANO

Polivox – Que habilidades e técnicas você tinha ou desenvolveu para reconhecer a verdade de cada artista, aspirante ou já consagrado, e entender como ela poderia gerar empatia com o público?

Midani – Não há técnica. No meu caso, foi primeiramente uma intuição. Uma coisa extremamente emocional. Depois, a técnica… A técnica é resultante disso. No sentido de que, se você segue a tua intuição e pensa também que você não pode ser intuitivo a todo momento da tua vida, porque pode até ser perigoso, mas se você tem fé na tua intuição, e que uma vez que a tua intuição te dirige para um certo caminho, dali você introduz um pouco o cartesiano. Um pouco não… Basicamente, o cartesiano. Então, de maneira que um ajuda o outro. Mas nunca botar o cartesiano na frente. Eu profundamente acredito que a emoção, quando se trabalha em música, em cinema, enfim, em artes criativas, primeiro você tem que respeitar; e dar um espaço consequente à tua intuição. Isto é, se você for uma pessoa que não tem muitos truques na tua vida. Porque esse é o problema, né? Ter muito “truquinho” para se defender, para foder a pessoa, para não sei o quê. Aí a intuição é muito ruim. Mas, se você for uma pessoa normalmente aberta, você deve dar um belo espaço à tua intuição e, depois, discutir um pouco essa intuição. “Ela tem razão aqui, ela tá errada aqui…” Enfim, ajustar essa coisa, né? Então, técnica não teria, mas sim o recurso, a razão para estruturar a emoção.

 

Polivox – Que episódios vivenciados por você e por seu grupo de trabalho – como você menciona em seu livro – podem exemplificar como essa metodologia de avaliação gerava resultados positivos para o artista e para a indústria?

Midani – Vai ser difícil te responder, porque eu acho que a finalidade desse grupo de trabalho não era para desenvolver métodos. Eram pessoas que pensavam. Não vou te dizer “pensador”, porque “pensador” fica uma coisa muita séria. Eram pessoas com uma percepção brasileira muito grande, uma empatia pela música brasileira muito grande, que vinham de esferas diferentes, mas não tão longe também da música. E o que eu precisava lá era de informações, informações para eu poder entender. Porque chegou o momento em que eu realmente me sentia despreparado, incapaz, para atender à dona Maria Bethânia, atender ao senhor Caetano, atender ao senhor Gil e assim por diante. O Raul, enfim… Jorge Ben Jor! São todos. Chico Buarque… São todas pessoas com uma bagagem intelectual, uma bagagem artística extremamente rica e poderosa. E lá eu, presidente de uma companhia, lidando com essas pessoas. Eu me senti muito incapaz – é a palavra -, sem cultura, sem o poder. Não o poder de trabalho, de comandar, mas o poder de compreensão. Então, poderia ter acontecido, se eu não tivesse feito isso, que, quando estivesse falando com Caetano, o meu discurso teria sido o de Orlando Dias e coisas assim, entende? E não reconhecer ou não admirar a pessoa como ela é. Não a pessoa como eu gostaria que ela fosse, porque, claro, seria sempre pior. Então, esse grupo de trabalho me ajudou muito para essa coisa de aprendizagem das virtudes de cada uma dessas pessoas. Como eu não nasci no Brasil, como eu não estive na escola no Brasil, até hoje me faltam algumas coisas que te dão com o nascimento no lugar. Então, eu supri isso, ou parte disso, com o grupo de trabalho. Esse foi o caminho.

Polivox – As relações humanas são desafiantes, geram conflitos, tensões, aprendizados, bem-estar. Entre as relações que você desenvolveu com os seus artistas – os quais tinham “egos” que fascinavam você – qual ou quais delas foram mais intensas nesse sentido?

Midani – (Pende a cabeça para atrás pensativo). Talvez, surpreendentemente, fosse o Erasmo Carlos. Talvez fosse… Gil foi de uma importância pra mim extraordinária, Caetano nem se fala. Mas, a mais profunda, no sentido, aí sim, humano, talvez tenha sido o Erasmo. Porque, no caso do Erasmo, eu tinha que prover Erasmo de uma coisa que ele não tinha descoberto dentro dele, mas que estava dentro dele. Que ele tinha um valor extremamente superior ao valor do Roberto, no sentido mais humano. Não vou te dizer que Roberto não seja humano. É o retrato do Brasil, o rei do Brasil. Mas tinha dentro do Erasmo uma riqueza que ele não tinha descoberto nele mesmo e que eu achava um absurdo isso. Então, talvez, o Erasmo foi uma pessoa com a qual eu tive essa intimidade maior. E eu acho que eu consegui o que eu tava antevendo, o que eu tava procurando lá dentro do “bichinho”. Porque você vê o Erasmo hoje, é um personagem extremamente importante, um personagem extremamente realizado… Ou… Ninguém nunca é realizado, mas visto de fora, pelo menos, é um personagem muito realizado. Eu tive também com Jorge… Jorge Ben. Eu creio ter trazido para o Jorge – é difícil falar dessas coisas, sabe? – não uma confiança no que ele fazia, porque ele sempre teve total, cega confiança no que ele fazia. Mas, talvez, sentar ao lado dele e dizer “então vamos!”. E ele declarou várias vezes isso publicamente, que se não tivesse eu estado perto dele, quem sabe como estaria a carreira dele. Eu acho que ele não tá certo… Uma vez, ele declarou, na minha frente inclusive, que ele era muito grato a mim, porque eu tinha deixado ele gravar “Tábua de Esmeralda”. Como é que eu ia deixar ou não deixar? É um gênio, você faz o que ele quer! Então, eu acho que o Jorge pode estar grato a mim por coisas que não deveria ter gratidão, porque eu não tive mérito nenhum. Eu tinha o Jorge, eu não tinha um montão de músicas, não. Tinha o Jorge. Jorge quer fazer? Que faça! Caetano quer fazer? Que faça! Gil quer fazer? Que faça! E assim era. Porque eu tinha uma confiança absoluta na minha intuição quanto a essas pessoas. Não me interessava muito as músicas – claro, eu estou falando isso como uma imagem… – nem me interessava muito as músicas, me interessava o sujeito

LUCRO E CRIATIVIDADE

Polivox – O que é sucesso pra você?

Midani – O que é sucesso? Ser de grande qualidade e vender pra caralho! Isso que é sucesso pra mim. Eu me lembro uma vez, quando eu voltei ao Brasil, no iniciozinho de 68, eu ouvia os discos de Elis, por exemplo – um outro personagem, pra não ficar naqueles só –, que vendiam 5 mil. Caetano vendia 5 mil, Gil vendia 3 mil, Gal vendia 3 mil… E eu pensava: “Esta companhia vai ser um sucesso extraordinário… o dia que essas pessoas vão vender 50 mil”. E não demorou muito também. Demorou dois anos, talvez, três anos. Vendiam 50, depois 100, depois 150, depois 40, depois… o patamar tinha mudado. Então, sucesso, definitivamente, é o que eu chamaria, ou estimava, de boa música… E é difícil esse critério de boa música, hein? Mas, enfim, é um critério pessoal. E fazer com que isto aqui se torne uma realidade. Não só um sonho, uma realidade. Isso é que eu acho importante.

Polivox – Você vivenciou um período em que era possível, no contexto da indústria fonográfica, equilibrar as necessidades de lucro com projetos que primavam pela experimentação artística. Ainda é possível sonhar com esse equilíbrio entre necessidade de lucro e criatividade?

Midani – O que eu acho é que a situação de hoje não é brasileira, ela é mundial. Ela é mundial não somente por causa desses conglomerados que impuseram uma preocupação muito maior com o retorno sobre o investimento, de uma maneira até absurda – menciono no livro também essa dificuldade do tecnocrata poder falar com o artista, né?; mas eu ainda acho que deveria haver um lugar pra isso, que há um lugar pra isso, só que a estrutura do mundo não permite mais dar esse lugar. Quando eu comecei, por exemplo, na Phonogram, em 1968, havia um orçamento pro ano. Se discutia com a diretoria, lá na Holanda, o bem sucedido e o mal sucedido, no fim do ano, em novembro ou dezembro. “Ah foi bom, ah não foi bom…” Enfim. Passou o tempo e essas revisões de orçamento passaram a ser trimestrais, passaram a ser mensais e, hoje em dia, eu tenho a impressão que toda a semana alguém lá chama: “E como é que tá o negócio dessa semana? Você vai vender essa semana? Você vai vender na próxima semana?” Então, isso não é um fator, primeiro, brasileiro e, segundo, discográfico – é um fator do mundo. E, se as vendas da Apple estão bem, “pof”, as ações fazem isso (aponta para cima), se alguém tossiu e está com resfriado, as ações, “pof”, vão abaixo. Então, eu acho que o mundo andou não mais com tempo para planejar, pensar e desenvolver. Tudo é mutante o tempo todo. Então, isso é um elemento. Outro elemento é que eu não vou pensar que a música, como qualquer mídia, vai ser eternamente tão importante quanto ela foi. Hoje, a gente vê que o jovem passa horas na internet. Às vezes, três, quatro horas. Isso é competição direta com o ato de ouvir a música. E a música, ao invés, naquela época, quando chegava um disco, você botava o disco na vitrola e todo mundo ouvia esse disco, não uma vez, várias vezes, se discutia sobre esse disco. Hoje, é uma visão completamente obsoleta. Você bota uma música aqui e faz outra coisa. Eu nem sei como aquele pessoal é capaz de fazer isso, porque eu não consigo prestar atenção em duas coisas. E, certamente, quem sai prejudicada nessa história das duas coisas é a música, porque vira música de fundo. Então, a letra não tem importância, o astro, vamos chamar de “astro”, não tem a mesma relevância, enfim… É difícil te responder, francamente. Mas, de qualquer maneira, há de pensar que tudo o que acontece na internet, de Facebook a Youtube, tudo o que você quiser, são meios de divulgação adicionais aos que a gente tinha vinte anos atrás ou trinta. Portanto, são benéficos. A única que coisa que talvez não seja benéfica é que você não está mais obrigado a pagar para ouvir. Isso vai ter, se for assim, vai ter consequências, lá na frente, tétricas para a música.

Polivox – Caetano, Gil, Milton, Paulinho da Viola – todos eles completaram 70 anos em plena atividade artística…

Midani – (Interrompe, rindo) Tudo velho…

Polivox – Eles fazem parte de uma geração que você ajudou a construir. Você acha que esses artistas ainda são uma referência criativa para as novas gerações?

Midani – Creio que sim, não? Creio que sim… A gente tem esses exemplos, e não pertence somente a esses artistas, eu sempre gosto de ampliar um pouco a visão. Vou tomar o exemplo do Led Zeppelin. A referência que os jovens roqueiros hoje têm, em grande parte, se dirige aos Zeppelins da vida. Eu acho que, para um jovem músico ou para um jovem que gosta de música, tem sempre um “vamos ver de onde é que a gente vem?”. No Brasil, se faz isso com Pixinguinha, chorinho e companhia. Nunca esse tipo de música foi tão relevante dentro da cena musical. Sempre foi relevante como referência, mas hoje você tem clubes de choro no Brasil inteiro, que tocam frequentemente e ganham a vida com isso. Não puseram muito ainda em questão a capacidade ou a possibilidade de evolução desse chorinho. Estamos ainda, na minha opinião – posso estar bem equivocado –, estamos ainda em um período de reverência ao chorinho. Então, tem que se tocar o mais “chorinhoso” possível, né? Mas é uma futura fonte de evolução de música que virá um dia inspirar outras músicas.

Polivox – Como essa referência está presente na produção musical da nova geração?

Midani – Eu tenho dentro do carro aí. Eu estava ouvindo já pela terceira vez mais ou menos, um menino muito talentoso, novo, que já tem uma reputação dentro de um certo nicho. Eu não sei o nome dele… Memória é terrível; inclusive, porque não aumenta minha cultura de informação… Mas eu acho que muitos deles ainda estão, por exemplo, este, pelo menos, é impecável em todos os sentidos, mas é um coquetel de Chico e Caetano terrível. Quando é que vamos sair deste engodo? Porque passa a ser um engodo hoje em dia, um engodo feliz, maravilhoso, né? Mas não deixa de ser um engodo.

NOVAS TECNOLOGIAS

Polivox – Durante o período em que você atuou na indústria fonográfica, o mercado mundial foi marcado por movimentos – Bossa Nova, Tropicalismo, Rock-B -, nos quais você teve papel fundamental. Para que serviram esses movimentos?

Midani – Disto eu tenho certeza: a tecnologia pode mudar, mas a maneira como as pessoas pensam não muda muito. Mudança superficial… Fundamentalmente, as pessoas gostam que a gente ajude elas a entender alguma coisa. É como uma visita a um museu. É sempre melhor quando tem uma pessoa que entende, que sabe, e que te mostra as várias facetas dessa coisa. Então, a coisa do movimento ela não é imprescindível, mas é extremamente importante, porque ela fixa uma imagem a qual as pessoas podem se agarrar e entrar e ter a chance de entender o que está acontecendo. Isso é o que falta muito hoje. Falta demais! Eu tenho tido conversas com várias pessoas, várias pessoas sobre isso e não cheguei – nenhuma dessas pessoas com as quais eu tenho conversado chegou tampouco – a nenhuma conclusão. Mas o que mudará certamente é que debaixo desse guarda-chuva, se esse guarda-chuva houver, você não vai ter a unidade musical que tinha embaixo dos outros, mas terá uma diversidade. É uma outra época, outro meio.

 

Polivox – Você acha que o contexto atual do mercado musical permite o surgimento de artistas com tamanho poder de influência e relevância cultural como, por exemplo, Caetano Veloso, João Gilberto, Chico Buarque, entre outros?

Midani – Que pergunta, hein? Eu não me sinto capacitado para responder isso, não me sinto capacitado realmente. Porque eu não sei qual é, não senti ainda qual é a fome da juventude – porque é tudo com a juventude, né? –, qual é a fome da juventude hoje! Qual é? Naquela época, a gente sabia. Na Bossa Nova, era evidente: o jovem brasileiro não tinha música brasileira pra ele. Isso era claro! Aí você vai no capítulo dois, que se chamou “Tropicália” – eu hesito um pouco em chamar “Tropicália”, porque deixou o Chico fora, deixou a Elis fora, deixou o Jorge Ben fora, deixou Raul Seixas fora; vamos chamar de “Tropicália” e “MPB” – era o manifesto da juventude, que se rebelava profundamente contra o regime ditatorial. Quando veio o rock, ele veio como uma atualização musical do Brasil em relação aos outros países do mundo. Mas hoje eu não sei dizer… As frustrações são outras, são mais financeiras, tecnológicas. Ficar o dia inteiro na televisão sem saber se compra Vivo, se compra Claro, se compra Apple, não sei o quê… As tuas emoções são dirigidas em outro sentido. A tua afirmação pessoal hoje não é mais a de dizer “eu sou fã de fulano como artista”. Não. “Eu tenho um ipod”. Eu sei que tô exagerando e simplificando, mas tem alguma coisa por ali. A afirmação da juventude se faz de uma maneira muito diferente do que ela era. Talvez menos humana e mais tecnológica. O que é normal, porque estamos vivendo uma época em que a tecnologia passou a ser redundantemente importante na vida de cada um.

(Pausa para água)

Polivox – Atualmente, os artistas têm à disposição computadores e uma série de aparelhos eletrônicos. Quão determinante você considera o uso desses instrumentos para a criação de canções hoje?

Midani – A utilização dessa tecnologia, na minha opinião, é fundamental, porque o artista, compositor, não depende mais, ou não depende tanto ou depende se quiser, do aporte musical de terceiros. Ele pode começar com o seu violão, com a sua guitarra, e ir construindo pouco a pouco a sua música como ele a entende. Nesse sentido, eu acho que é um progresso muito grande. Por outro lado, pode ser um pouco o empobrecimento da riqueza harmônica que trazia o músico nessa história. Mas, basicamente, eu acho extremamente positivo o fato de você estar em casa, com o teu Pro Tools, e ir construindo, como se fosse uma casa, né?, ir construindo a casa do jeito que você quiser. Aí, depois, se você tiver os meios pra isso, você chama um arquiteto, para dar uma fineza nisso. Enquanto, antigamente, era essa luta de você mostrar para os músicos em um estúdio de ensaio, e aí conversa, discute, “que não sei o quê”, “pra onde que você vai”, era um trabalho árduo muitas vezes. Nesse sentido, eu acho maravilhoso. Uma crítica que eu fazia até quinze dias atrás, é que isso não era um som novo. Que estamos precisando de um piano-forte, como uma imagem simplificada. Então, eu dizia que esses instrumentos, sendo eles reproduções de sons já existentes, não traziam essa nova dinâmica que a música precisa. E aí, na semana passada, eu ouvi um grupo que se chama Muse. Do Muse, fui para um artista alemão, eu acho, que é Sky não sei o quê das quantas. E esses caras foram uma grande surpresa pra mim, porque, dessa história que eu criticava, eles fizeram uma força. Realmente, descobriram texturas musicais e harmônicas e o uso desses instrumentos de maneira completamente revolucionária. Então, estou um pouco mais positivo do que era antes quanto a isso… Uma outra coisa que, creio, vai ser interessante, ou poderá ser interessante, é que vem novidade no sentido do técnico de mixagem, que dá à bateria ainda muito mais importância do que ela tinha. Então, como consequência disso, a música também toma uma dinâmica que ela não tinha antes. E eu já ouvi alguma coisa parecida com dois ou três outros grupos ou artistas. Então, venha novidade talvez por aí.

Polivox – Você acha melhor a canção de hoje ou daquela época?

Midani – Eu acho que tem canções maravilhosas que são feitas hoje, tem artistas maravilhosos que estão por aqui hoje. Demora mais do que demorava – se há um artista que se chama jovem – para fazer sucesso. Você vê, por exemplo, Arnaldo Antunes. Precioso… Eu já cansei de dizer que era, pra mim, o poeta que o Caetano foi em outras épocas. Você tem… Mallu Magalhães, por exemplo. Geniozinho essa mulher! É um exemplo, eu acho, a Mallu, de uma artista que coloca as coisas de uma maneira completamente diferente na sua poesia. Pode ter até o peito de dizer que tem 18 anos e já é velha. É uma coisa que não tinha acontecido até aquele dia. A própria postura dela, a própria personalidade dela. Deveria ser um ídolo essa mulher, para todas as garotas que estão por aqui. Porque ela está ali, se mostrou original, diferente, genuína. E nada. Até esse momento… Acho que ainda vai ser uma grande estrela, mas está levando tempo demais. Onde está esse público para dizer “ela é minha”?

A INTERNET E O ARTISTA INDEPENDENTE

Polivox – Quais são as principais diferenças entre o funcionamento do mercado musical do passado e do presente?

Midani – Em termos de marketing do produto, eu acho que não tem mudança, tem melhora. Muito mais meios para você poder trabalhar um artista do que tinha naquela época. Antigamente, você só tinha o rádio para repercutir. Hoje, não… Você tem todo esse leque de mídias e de sites que te facilitam a vida claramente. Nesse sentido, eu acho extremamente benéfico. Tem elementos complicadores no próprio marketing. Como “todo mundo” pode fazer música, você tem uma quantidade de coisas completamente medíocres que parece por ali, te confundem. Tem coisas demais. Isso deverá, creio, se acertar mais adiante. Porque tem que ter um intermediário entre esses milhares de propostas, das quais uma parte não é viável. Por exemplo, quando eu era patrão, eu passava, facilmente, 55 por cento do meu tempo conversando com o gerente de vendas, com o gerente da fábrica, com o crédito e cobrança, com o pessoal do depósito… Hoje em dia, eu não precisaria mais. Então, poderia eu dedicar meu tempo 90 por cento a operações musicais, operações de marketing, operações de lançamento, operações de “jabá” (risos), operações de qualquer coisa… Mas tudo destinado a selecionar uma música e promover essa música.

Polivox – Com a democratização da produção musical, todos artistas, a princípio, têm um  espaço semelhante. O que você acha disso? Que vantagens e desvantagens você vê entre esses dois momentos?

Midani – Antigamente, até entrar no estúdio, você tinha que ter provado que tinha um diferencial qualitativo ou quantitativo, enfim, um diferencial de personalidade. Hoje em dia, ninguém pede a sua opinião sobre isso, o cara já está lá. A vida é essa. Tem um montão de coisas ruins e um montão de coisas boas (não tanto quanto as coisas ruins, é verdade). De qualquer maneira, todo mundo tem que encarar isso. É uma situação que existe e não vai desaparecer. Todo mundo está ali podendo fazer alguma coisa. Você bota uma nota, pede um tipo de harmonia e puf! vai construindo uma melodia, entende? Então, isso é uma mudança extraordinária, pro bem e pro mal.

Polivox – Com a internet e a possibilidade de relacionamento direto com o público, você acredita que o artista pode se tornar autossuficiente?

Midani – Lá se foi o mundo de você compor e cantar uma música e ficar em casa. Isso já há quarenta anos que acabou. Cada vez o artista tinha que fazer mais coisa. Primeiro, havia um compositor e qualquer cantor para cantar aquela canção. Depois, o compositor e o intérprete juntos numa pessoa. Depois, teve a concorrência das gravadoras, que fez com que você pedisse ao artista, cada vez mais, para ele se meter na promoção do seu próprio disco. Então, entende? É uma coisa que vem vindo. E aí, eu acho que hoje, igual a ontem, o artista tá precisando de um técnico de internet, de um marketeiro contemporâneo, enfim… tá precisando disso tudo. Precisa de pessoas que bolam camisetas para ele poder vender, de gente que vai trabalhar para poder ele ter shows, remunerados e cobrados. Toda essa coisa deve permanecer. O independente sempre foi uma pessoa que era rejeitada pelo meio, antigamente. Por isso que ficava independente. No sentido do business, era um fracassado, uma pessoa que não entrava no círculo do business. Hoje em dia, não tem mais isso, porque são milhares que estão fora do negócio estando dentro do negócio. Isso também que muda muito.

Polivox – Você disse certa vez que havia proposto aos seus colegas da indústria fonográfica parcerias com sites de compartilhamento de arquivos musicais, como o Napster, por exemplo, oferecendo inclusive sociedade. Por quê? Por quê sua sugestão não foi seguida? 

Midani – Eu acho que por um motivo muito simples: se você olha a essência das coisas musicais com as quais me comprometi, sempre eram, na maior parte das vezes, na frente do seu tempo. Então eu, que sofri muito com todo esse arcabouço que eu mencionava antes, de fábrica e coisas assim, quando apareceu essa teoria oposta, eu só pensei: “do caralho, porque não vai ter mais fábrica, não vai ter mais depósito, não vai ter mais nada”. Um outro elemento é que a indústria é uma indústria da juventude. Então, tem que ter artistas jovens, executivos jovens, espíritos jovens, tudo jovem…  E a indústria, como era dirigida por tecnocratas, gente de uma certa idade, 55, 60 anos… quando eles viram isso, se sentiram ameaçados. Justamente o que era não uma ameaça. Eu pensava que era uma solução, pelo mesmo motivo que pensava que os baianos iam ser uma solução, entende? Mas, que seja dito, eu não participei diretamente dessas conversas, e se tivesse participado, com certeza, teria sido voto vencido. 

Polivox – O iTunes, da Apple, principal plataforma de venda de música atualmente e modelo para muitas outras empresas da internet, não produz conteúdo e não assume os riscos inerentes ao investimento em música. O que você acha desse modelo de negócio? 

Midani – Eu vejo que a missão da companhia é diferente. A missão do iTunes é diferente. É um departamento de vendas. Ela é, tipicamente, unicamente, um departamento de vendas. Então, você tinha um departamento de vendas, com teus vendedores, supervisores, aquela coisa toda, que vendia o teu disco e não se comprometiam com a promoção. Se comprometia em vender o que tem. E o iTunes vende o que tem. Acho que não temos que pedir ao iTunes alguma coisa outra do que essa, porque sua missão foi essa. O “bicho” foi desenvolvido para isto. Então, se você tivesse uma outra missão, a outra missão são esses meninos todos que estão no computador fazendo música.

A CARREIRA PASSADA A LIMPO 

Polivox – Considerando o sucesso de sua carreira, é muito fácil para qualquer um dizer que ela foi irretocável. Mas quando você a coloca em revista, há algo que gostaria de retocar? 

Midani – Com certeza, com certeza, porque é muito cômodo estar sentado o Midani dizendo “eu fiz”, “não deixei de fazer”, “fui muito bem-sucedido, o único inteligente nessa história”. Mas, por dentro, eu sei que eu cometi muitos erros. Muitos… Um bom número de erros. Como deve ser na vida, né?, você não pode fazer só acertos. Eu passei momentos da minha carreira onde era bastante arrogante, inclusive. Que não é uma qualidade muito prezada, né? (Risos) Mas a vida se encarregou de me dizer: “ó a tua arrogância, vê lá agora”. No anos 80, eu peguei uns fracassos redundantes. Então, claro, claro… Eu cometi injustiças, eu cometi… Mentiras. Eu cometi… um montão de gente… É humano, humano, não há pessoa que só dá certo. Tantas coisas deram certo, por quê? Privilégio. Agora, nada deu errado pra mim em algum lugar? Claro que deu errado, claro. E assim, inclusive, você vai se formando, né? Respondi a tua pergunta, acho. 

Polivox – Obrigado pela entrevista, Midani. 

Midani – Muito obrigado. Eu também. Achei ótimo! Se tá tudo bem aí, aqui tá tudo certo. Muito obrigado. Foram boas as perguntas, é verdade, foram boas perguntas.

EPÍLOGO

Midani – Eu acho que a tecnologia veio a mudar enormemente tudo, porém não repõe em questão a alma deste negócio, os fundamentos, que é descobrir um artista, esse artista fazer seu caminho, distribuir esse artista… a indústria não faz mais isso, claro, mas isso a internet faz, entende? Então… o que mudou é que meu trabalho periga não ser mais remunerado. Isso é fatal! Como é que você vai ser um profissional se você não ganha dinheiro da tua profissão, quer dizer… Isso é ilógico! Isso é o fundamental! O fato de que você possa ter acesso ao fruto do meu trabalho sem que eu tenha fruto disso, eu acho que é contrário não ao capitalismo, não ao comunismo, não a nada, é contrário ao mundo do jeito que ele foi feito. Esses pontos que são os pontos de profunda mudança. Profunda mudança.