Juliana Linhares

Entrevista: Bruno Cosentino, Caio Riscado, Julia Branco, Pérola Mathias, Rafael Julião.
Fotografia: Clarice Lissovsky. Transcrição: Bruno Cosentino.
Edição e revisão: Bruno Cosentino e Pérola Mathias. 

Pérola Mathias – Juliana, a gente está muito feliz de ter você aqui para esta entrevista. Obrigada. Então, pra começar, eu queria que você situasse um pouco pra gente como acabou no mundo da música. Você tem uma trajetória super longa, com vários recortes…

Juliana Linhares – Eu gostei da expressão “acabou”, porque é isso: a pessoa não consegue nem começar no mundo da música, ela tá sempre acabando, todo mundo só acaba, acaba, acaba… Inclusive eu estou falando aqui de Natal, estou na casa dos meus pais. Eu sou de Natal, Rio Grande do Norte. Quando eu tinha 17, 16 anos mais ou menos, eu comecei a entender que eu gostava de cantar, que cantar era uma coisa que acontecia pra mim e acontecia pra outras pessoas também, apesar de que nesse momento eu não me considerava cantora de jeito nenhum. Eu fazia teatro na escola e pra tudo as pessoas entravam em contato comigo. Se tinha algum evento importante, lá ia eu recitar um poeminha. Era assim, eu era uma criança escolhida pra isso. Quando eu fiz 16, 17 anos, eu comecei a cantar na escola, surgiu um grupinho vocal, eu entrei. Eu era convidada a cantar em todos os eventos da escola. Dia Internacional da Mulher, a gente ia lá e cantava: “mulher, mulher, mulher…”, sei lá, qualquer coisa. Eu lembro que eu cantei “Maria, Maria” na escola no Dia Internacional da Mulher. Aí tinha a hora cívica — a gente tinha muita hora cívica na escola –, acabava a hora cívica comigo cantando. Eu virei a pessoa da escola que cantava, aquela coisa cantora do colégio, atriz do colégio. Quando eu tinha de 17 pra 18 anos, meu pai fez uma festa de aniversário e me colocou pra cantar na festa de aniversário dele, com meu irmão tocando e um amigo do meu pai tocando — porque eu não tinha galera da música, eu nunca tive uma galera jovem que vinha na minha casa fazer um som, isso não aconteceu na minha vida, só quando eu cheguei ao Rio e conheci o Rafa [Lorga], do Pietá. Eu cantei nessa festa de aniversário do meu pai e ele tinha alguns amigos que tinham negócios. Quando um amigo ia abrir uma loja de depilação, eles perguntavam se eu podia cantar na abertura, eu e o cara do violão. E nisso a gente recebeu uns convites pra inauguração de loja de depilação, de loja de móveis… Eu cantei em algumas inaugurações (risos) e foi isso. 

Quando eu já tinha 18 anos, me convidaram para ser mestre de cerimônias do centenário de Cartola aqui em Natal, que era um show muito especial, com músicos incríveis da roda de choro aqui da Ribeira, com cantoras tipo Khrystal, de quem na época eu era fã, Simona, e uma galera.  Me chamaram para abrir a noite, falar, apresentar o show. Essa história é meio doida, porque aí, do nada, o maestro olhou pra mim e disse: “eu soube que você canta”. Eu fiquei dura, porque eu só tinha cantado em casa, na escola e nas inaugurações, nunca tinha chegado num lugar profissional.  E eu disse “como é que você soube?”. Ele disse: “não vou te contar, mas eu quero que você cante no show”. E aí a minha vida é muito assim, eu recebo uns convites e digo “então vamos, eu não tenho nada a perder, eu não sei se vai ser muito bom, mas vamos lá”. Aí ele me ligou e disse “você pode vir amanhã à tarde aqui na Ribeira?”, que é um bairro histórico, um bairro do porto, onde a cidade começou, tem uns casarões antigos e tal, “pra gente pegar o tom de uma música e ouvir tua voz?”. Aí eu entrei num casarão vazio, com um eco, com aquele cara tocando um violão sete cordas, eu não sabia nem cantar direito, e ele começou a introdução de “O mundo é um moinho”, e foi a primeira música que eu cantei que eu senti que ali alguma coisa aconteceu que mudou o rumo da minha vida mesmo. Ele olhou pra mim e disse assim “caramba, você canta! Você vai cantar no show.” Quando foi na véspera do show, uma das cantoras ficou doente, e como eu era a cantora mais fácil, no sentido de que eu era a pessoa que estava ali desesperada, aprendendo, disponível, ele disse “você tem como pegar as canções dela, pra amanhã?”. E eu disse “tenho”. Então, acabou que eu cantei muito na noite do show. E foi uma noite na rua de um bairro histórico, com mais de mil pessoas assistindo. E eu cantei ao lado de Khrystal, Simona, Glorinha Oliveira, as cantoras daqui, ninguém nunca tinha ouvido falar de mim e eu cantei metade do show. Aí no outro dia, a foto que aparece no jornal sou eu cantando, na capa da Tribuna do Norte, de Natal. Eu tenho esse jornal guardado, fala do show e diz assim: “e Juliana é uma grata surpresa para Natal”, é engraçado (risos). Depois disso, essa galera aqui de Natal… Eram uns senhores que tocavam, uma galera que tocava na orquestra sinfônica, não era uma galera que estava começando a vida querendo tocar, era uma galera que se reunia pra trabalhar, pra tirar a grana deles, pra fazer a gig, não tinha essa vibe galerona. Então eu também entrei num modo que era diferente. Eu não fazia um trabalho autoral, eu nem pensava sobre isso, eu só cantava porque me chamavam. E eu fazia teatro paralelamente, nunca deixei de fazer, era o que eu queria fazer da minha vida mesmo, ser atriz. Mas eles me chamaram pra participar de um projeto que era todo sábado, durante três horas, num bar de música. E isso foi uma puta de uma escola. Ele disse “vem aqui pra gente tirar os tons”. Isso era quase na véspera do primeiro show, que era um projeto de samba e bossa nova — olha lá a vida como é engraçada. Eu cheguei lá e ele disse assim: “Minha namorada”, de Vinicius [de Moraes], você conhece?”. Eu fazia: “ah, acho que eu sei…”. “Então anota aí: “ré menor”. “‘Chega de saudade’, sabe?”. “Sei”. Mas eu sabia porque eu conhecia a música, mas não sabia cantar. E essa é uma diferença muito grande. Foi meu primeiro aprendizado: uma coisa é você conhecer a música, outra coisa é você saber cantar a música. A música é totalmente diferente [risos]. E ele me passou uma lista de trinta músicas de samba e bossa nova que eu nunca tinha cantado na minha vida e eu tinha dois dias para cantar. Eu cheguei em casa, botei um fone, eu lembro muito, fiquei na frente do computador, ouvindo as músicas e tentando aprender e foi um caos a minha estreia. Eu cantei com as letras na mão, eu errava. Eu errava oitava, eu não era da música, não tinha estudo. Ele me dava uma oitava e eu entrava oitava acima. E não tinha voz pra chegar no agudo. Eu lembro que fiz isso em “Tarde em Itapoã”. Eu me lascava, não tinha como continuar. Aí a banda meio que parava e eu continuava lá, vendida, na merda [risos]. Só que eles foram com a minha cara, porque eles podiam escolher outra pessoa pra cantar, só que eu acho que eles me acharam uma pessoa disponível, eu não dava trabalho, eu acho que sou no trabalho uma pessoa fácil, não sou uma pessoa difícil de trabalhar, acho que Caio [Riscado] pode falar sobre isso [Caio confirma com a cabeça]. Eu sou a favor. Então, eu acho que eles disseram: “vamos com essa menina novinha, porque ela é muito a favor, ela não vai dar dor de cabeça”. E toda vez que acabava o show, era barzinho, tinha intervalo — eu cantava horas, horas — ele chegava pra mim e me dizia: “Ó Ju, aquela nota é mais torta aqui”. E fazia no sax pra mim. Mas me abraçava e dizia que tinha sido ótimo, mesmo na merda. E eu passei uns dois anos cantando ali, dos meus 18 aos meus 20. Mas nenhuma cantora de Natal ia me assistir, não tinha essa troca, eu não era considerada uma cantora, e eu também não me via como uma cantora, eu me via como uma pessoa que tinha tido uma oportunidade de cantar todo sábado. E eu ia. Só que eu aprendi muito, muito, porque o repertório é muito difícil. Eu cantava Chico Buarque, eu cantava umas coisas muito tortas e eu aprendi a entortar o meu ouvido, porque ele não era torto, eu fui afinando a parada, eu fui entendo, no perrengue, porque eram três, quatro horas de show, uma música atrás da outra, uma gig muito boa, com sax, percuteria, baixo, uma galera meio chique e eu lá. Todo final de semana meu pai ia assistir, muito orgulhoso, achava o máximo levar os amigos pra me ver cantar. Eu ganhava, sei lá, cem reais depois de quatro horas de show [risos]. Eu fazia arquitetura na UFRN e ensaiava meu teatro. Quando eu fiz vinte anos, eu resolvi me mudar pro Rio pra estudar teatro mesmo. Quando eu cheguei ao Rio, eu disse: “ah, já que eu tô cantando, eu vou estudar canto, pra cantar direito”. Aí eu fui pro Marcelo Rodolfo, que é um super mestre meu, meu professor de canto até hoje. E aí foi realmente o início do entendimento do que é ser cantora, o que é a minha voz, a minha personalidade na música que eu tava fazendo, o que era realmente ser cantora, porque eu não era nada, só uma alma perdida cantando as coisas ali. E aí eu entendi que a minha voz servia para alguma coisa, não era só estar ali cantando aquelas canções e servindo para alguma coisa que eu não sabia o que era. Tive um processo muito longo com o Marcelo para entender o que é que eu poderia fazer com a minha voz. E aí mudou tudo. Um ano depois, eu conheci o Rafa [Lorga] e o Fred [Demarca]. Foi muito interessante, um processo de autoconhecimento vocal, no lugar autoral e no lugar Juliana, mulher, cantora, voz, ao mesmo tempo.

“Pra mim, isso não era cantar, era ser pessoa.”

Pérola Mathias – Quando você começou a cantar, você já tinha um conhecimento musical? Por exemplo, quando eles diziam que o seu tom era, sei lá, ré menor…

Juliana Linhares – Eles que sabiam o que era ré menor, eu ia de ouvido. Ele dava o ré e eu entrava. Eu tinha o ouvido pra entrar, mas o que era o ré menor, o si menor, o fá, eu não sabia, não. A gente fica tentando catar, mas às vezes não tem… A gente é simples mesmo, às vezes não tem uma grande história pra contar… E eu fiquei assim, será que eu quando era criança eu cantava? A gente fica buscando uma justificativa. A minha justificativa é que eu sempre gostei de cantar, eu sempre fui afinada e eu batalhei muito pra conseguir minha voz. Eu passei quatro anos fazendo aula com o Marcelo, me cagando, trabalhando muito, muito, muito, muito pra cantar direito — eu sou uma capricorniana da voz também –, tudo eu trabalhei pra fazer. Mas tem pequenas histórias. Minha mãe falou que uma vez chegou na escola para uma apresentação e ouviu a minha voz no microfone do portão da escola. Eu tinha cinco anos. Ela correu e disse que eu estava cantando todas as cirandas, porque a professora estava rouca. E ela disse que isso marcou ela. Mas pronto, nunca mais. Eu tinha o teatro. O teatro eu fiz, realmente, durante a minha infância e minha adolescência inteiras e isso era uma coisa na minha vida. A música não. Eu lembro de ouvir canções em casa. Meu pai tinha muitos discos, muitos LPs, de Raul Seixas, de Fred Mercury — meu pai era muito fã desses dois, ainda é. Então eram coisas que a gente ouvia muito. Aquele LP de Montserrat Caballé com Fred Mercury, eu ouvi muito, a minha vida inteira. Maria Bethânia, muito, O Grande Encontro… E meu pai era muito fã do Zé Ramalho. Então era muito Zé Ramalho, mais do que Alceu, por exemplo. Eu fui descobrir Alceu sozinha, mas, Zé, meu pai sabe todas as músicas. Aí eu tive a minha fase Marisa Monte, aquele disco Barulhinho bom, que eu amava. Maria Bethânia, eu também tive uma fase. Mas eu ouvia Sandy e Junior. Eu ouvia tudo. Forró, aqui a gente ouve muito forró, porque o rádio da casa fica ligado na estação de forró. Então, o dia inteiro eu ouvia “Tareco e Mariola”, forrozão, não à toa vou gravar essa música este ano no meu disco, porque ela faz parte da minha vida. Aí eu falava: “eu nunca cantei, não sei como eu virei cantora”. Aí meu irmão uma vez olhou pra mim e disse: “Juliana, é porque você não via de fora, você cantava dentro de casa o tempo inteiro, toda vez que você ia tomar banho, você cantava o banho inteiro”. E eu não tinha essa noção. Então, eu não sabia que eu cantava, pra mim isso não era cantar, era ser pessoa. Aí eu entendi que eu sempre gostei muito de cantar, mas eu não sabia que isso era uma coisa diferente.

“Quando você canta uma música que nunca ouviu, você se ouve, todo mundo lhe ouve.”

Bruno Cosentino – Tentando juntar o que você falou, quando você disse que fazendo aula de canto descobriu a sua voz, pra mim, descobrir a voz é mais autoral do que fazer o som com os meninos. Quer dizer, a sua voz, que sai de dentro de você, que é seu corpo falante, isso é o que pode haver de mais autoral. E quando você diz que cantava em casa, sendo simplesmente pessoa, sinto que não é porque antes você não tinha consciência — e depois, com a aula de canto, passou a ter –, que você não estava sendo autoral, cantando, não importa, uma canção sua ou não, muito pelo contrário. E aí a minha pergunta, a partir disso, é: como isso tudo tem a ver com compor canções? Porque agora você começou a compor, o seu EP tem canções feitas por você em parceria ou sozinha. Como a voz da cantora se encontra com a voz da compositora — tudo isso é uma mesma voz?
Caio Riscado – Nessa questão da múltipla autoria, eu queria saber se você já viveu em algum momento esse descompasso entre o desejo da escrita e o desejo da composição. E quando que aquilo vira música. Existe uma certa frustração ou uma certa surpresa nesses caminhos? A palavra escrita é muito diferente da palavra cantada. Queria saber se você está se enxergando dentro dessa múltipla autoria, se você está conseguindo se respeitar enquanto cantora e enquanto compositora, que é isso que o Bruno colocou, ou se você está indo e voltando e se descobrindo mais uma vez multifacetada como você sempre foi?

Juliana Linhares –  Tem uma parada sobre o autoral que eu acho interessante, que é assim: quando você passou anos da sua vida cantando samba e bossa nova, “Chega de Saudade”, todo sábado, e as pessoas cantando com você no bar, eu não ouvia a minha voz. Eu simplesmente dava voz àquelas canções muito cantadas, muito conhecidas. É mais sobre as pessoas ouvirem aquilo e não você, sabe? Eu acho que passei um pouco por esse processo. E aí quando eu falo do autoral… Porque quando você canta uma música que nunca ouviu, você se ouve, todo mundo lhe ouve. Então, cantar as músicas do Pietá pela primeira vez era me ouvir e era fazer as pessoas me ouvirem pela primeira vez. Quando você ouve “Sussuarana”, a referência é a minha voz, e isso é muita coisa. E quando você ouve “Chega de Saudade”, nunca vai ser a minha voz, entendeu? Então, quando eu passei por esse processo, foi tudo junto mesmo. Eu concordo com tudo o que o Bruno falou, é o autoral de descobrir a minha voz também, não só as canções, mas foi tudo junto, por isso foi tão interessante, porque eu estava aprendendo a colocar a voz em alguns lugares que eu estava estudando. Eu vinha pra Natal de vez em quando e como eu ainda tinha o contato do pessoal daqui, eu fazia pequenos shows aqui quando eu vinha, hoje em dia não faço mais, faz tempo, mas eu fazia, e eu estava aprendendo a cantar. Era muito interessante, era eu tentando colocar minha voz num lugar novo, ouvindo minha voz, colocando personalidade nessas canções do repertório da bossa nova, e, às vezes, eu gritava na bossa nova [risos]. Tudo isso foi um processo muito interessante, até o Pietá existir e eu entender que eu podia dar a voz ali, que eu podia escolher como a minha voz seria, que eu podia entender como fazer, que eu não tinha uma referência que eu precisava imitar ou guardar, que ela vinha naturalmente. Era novo e, por isso, era tão doido, difícil e arriscado. Teve show que eu cantei de um jeito, show que eu cantei de outro, foi um processo muito grande.

“Eu dizia: ‘não sei como, mas eu preciso compor’”

Bruno Cosentino – Você toca algum instrumento?

Eu sou uma pessoa insegura, acho que somos inseguros, eu sou muito, quando eu fiquei sozinha no início da pandemia, o Rafa e o Fred tavam longe e eu realmente fiquei muito sozinha musicalmente, foi um desespero. Porque os meninos tem os trabalhos dele, tem os equipamentos de produção musical, e eu me vi meio perdida. Tenho meu microfone e não sei tocar, e aí, como é que eu faço? E eu não tive a coragem nem a capacidade da Teresa Cristina, que faz as lives dela à capela, eu achava que jamais ia poder uma fazer uma live à capela, achava meio nada a ver. Então, eu comecei a tocar mais e as músicas, várias, saíram do violão, por incrível que pareça. Foi engraçado, por mais que eu só toque cinco notas. Aí eu fui aprendendo, fui tirando outras notas. Eu descobri em outras canções novas harmonias e as roubava pra mim, ficava brincando em cima desse som que eu tinha descoberto no violão por causa de uma música que eu peguei e aí eu ia criando melodias a partir de outras. Mas eu não me considero uma pessoa que toca, eu acho que toco pra mim e na despretensão. Mas até no show novo eu quero tocar, minimamente, vou estudar pra isso, eu tô estudando pra isso. Não sou instrumentista, é uma pena, porque eu tentei estudar violão na minha vida várias vezes durante esses 11 anos e eu não consegui, porque eu faço oitocentas coisas e minha cabeça é muito doida pra focar, eu já foquei no canto e aí foi difícil estudar violão, mas que eu sinto que toda a minha geração de cantoras o está tomando pra si, além desse lugar da composição. 

Teve um momento em que eu comecei a pensar em fazer meu disco, em 2016, olha o tempo, quatro anos para fazer um disco, quase cinco, e eu falei “acho que eu quero fazer um disco meu”. O Pietá tem um processo de composição lento, é uma coisa conversada entre a banda, ninguém gosta de pensar “vamos compor e fazer”, não. É assim: “vamos deixar fluir, vamos deixar rolar, não se faz assim, se faz assim, então eu fui acompanhando o ritmo, mas eu era a única pessoa de fora do Rio vivendo no Rio e eu sentia uma urgência muito grande. Ou eu trabalho todo dia pra valer a pena estar aí ou eu volto pra Natal pra ficar aqui com a minha família. A qualidade de vida pra mim aqui é melhor, é mais barato, eu tenho apoio, e no Rio eu não tinha nada. E os meninos têm uma estrutura familiar que garante um apoio em alguns momentos da carreira numa cidade cara como o Rio. E eu fiquei muito agoniada com o fato de pensar que eu  precisava fazer outro disco logo, depois do primeiro disco do Pietá. E foi muito difícil, tanto é que eu ainda estou tentando aqui, e eu passei por um processo muito grande tentando entender o que seria esse disco, depois de ter me colocado tanto no Pietá, tanto, tanto, tanto, tanto — quem eu sou, o que é que eu vou fazer. E eu comecei todo um processo de entendimento mesmo, de deprê, de desânimo, de idas e vindas, e fui mergulhando muito no lugar do Nordeste, achando que tinha alguma coisa na minha trajetória de vida, de ouvir forró quando eu era criança e de ter uma voz que representava muito isso, que talvez fosse um caminho importante pra mim. Mas isso demorou muito, eu não tinha coragem de compor, eu achava que eu não sabia compor, porque eu cantava as músicas do [Thiago] Amud, era muito difícil — eu pensava “isso que é o compositor, né?”. Eu fui criada no Pietá ouvindo as músicas dos meninos, até do Luís Capucho. E eu fazia assim: “como é que eu vou compor?”. E aí teve uma crise grande pra mim, que foi perceber que todas as cantoras da minha geração e do meu tamanho, que eram só intérpretes, estavam num lugar do mercado fudido. Eu olhava e dizia “o mercado não consome mais intérpretes”. Aí eu comecei a entender que era o momento das compositoras. A galera quer muito mais ouvir o que a pessoa tem a dizer, o que a pessoa é, suas próprias canções, o autoral, do que a intérprete, nesses tempos. Eu olhava o surgimento da Liniker, pessoas que foram surgindo, o autoral forte, e isso mexeu muito comigo. Eu dizia: “não sei como, mas eu preciso compor”. E aí eu fiquei: “eu vou lançar um disco de intérprete, que é o que eu sou”, mas eu não conseguia. Porque eu pensava: “o que é que eu vou cantar? Ninguém vai querer ouvir, não vai vender, os festivais não vão comprar”. E eu voltava pro Pietá. E teve o disco do Iara Ira e, nisso, sempre fazendo teatro, como atriz, como assistente de direção. Então, estava sempre envolvida no teatro, que muitas vezes foi quem pagou minhas contas, por incrível que pareça [risos]. E aí quando foi na pandemia — se eu tiver falando muito vocês me avisem, é porque eu tô muito ressaquenta, tô ressaquenta da vida, muita informação — quando foi na pandemia, isso bateu muito forte em mim: “ou eu faço um disco meu agora ou eu vou me deprimir, mesmo”. O Pietá continua e vai continuar a existir, mas a estrutura de trabalho do Pietá se transformou muito ao longo desses 11 anos e agora é o momento em que cada um precisa também olhar pra si, porque os meninos já tinham trabalhos autorais e eu nunca lancei nada, tirando o disco do Iara Ira e o EP que eu fiz em dezembro, que foi uma loucura. Comecei a apertar um foda-se. A pegar uma coisas que eu tinha escrito e dizer “vou mandar pra num sei quem”. A insegurança também de você assinar uma coisa sozinha. Quase não tenho música eu e eu, porque eu faço um pedaço e já me dá uma agonia, “vou mandar pra alguém, pra quem que eu vou mandar?”. Acabou que é um momento de muitas parcerias, não só por isso, porque eu queria trabalhar com as pessoas, porque eu acredito muito nisso, porque foi isso que eu fiz a minha vida inteira, eu nunca fiz nada sozinha.

“Agora que eu estou aprendendo o que é ser compositora, que é você fazer a música e não gravar.”

Eu comecei a compor várias coisas, sozinha e não sozinha, e um texto, uma melodia, por incrível que pareça, eu tô nos dois lugares, eu faço melodias, algumas eu começo no violão para me dar um amparo, parece que eu preciso me segurar naquilo… mas eu fiz muitas melodias cantando no chuveiro. Eu ia tomar banho e botava o celular pra gravar, isso eu fiz muitas vezes. E eu começava, brincando e gravando, gravava tudo. E depois eu ia ouvindo. E a cada banho eu ia avançando em algumas melodias e gravando. Até que eu fechei algumas melodias, tudo na voz. Algumas eu consegui tirar no violão, outras não. Algumas pessoas me ajudaram a tirar essas harmonias e outras coisas eu fiz letra. Eu sempre gostei de escrever e eu sempre escrevi coisas e guardei. Teve um momento que eu disse assim: “vou escrever pra uma galera” — a Julia [Branco] depois eu falo, porque é específico — mas, eu escrevi pra Liniker, eu escrevi pro Chico César, eu escrevi pra uma galera e perguntei se essas pessoas topariam fazer parcerias comigo. E eu não queria parcerias imediatas com o Pietá, porque eu precisava criar outra coisa, criar outros vínculos, me sentir fortalecida de outra forma, também como compositora, eu queria compor com outras pessoas, entender outras sonoridades, outras musicalidades, outras mensagem, outros tudo. Eu continuo querendo compor com os meninos, mas para a banda. E aí de uma hora pra outra eu tinha 10 músicas, foi uma coisa muito rápida, porque Chico César falou que topava, a Liniker chegou a retornar, o Caio [Riscado] estava comigo nessa troca, eu e a Julia estávamos fazendo umas aulas juntas, trocando coisas e, daqui a pouco, eu tinha várias canções, eu não esperava. Eu tinha uns textos e não tinha coragem de mandar pro Chico César, mas um dia eu disse: “vou mandar essa porra, foda-se”. Em uma hora e meia ele me mandou a música pronta. Eu não sei, Bruno e Caio, às vezes eu me pergunto: “Será que é bom mesmo ou será que eu estou feliz porque estou conseguindo?”. Às vezes, eu me pergunto “será que estou escolhendo cantar essas canções minhas só porque são minhas ou porque elas são boas?”. Coisa de quem está começando a compor, de quem é intérprete há muito tempo, mas eu tenho pessoas envolvidas no trabalho, em quem eu confio, e as pessoas disseram “é legal, Ju, grave sim, é bom.” O Elísio Freitas foi um grande parceiro nesse caminho todo. Ele ouviu as músicas e me deu a maior força. Ele é o produtor musical do disco e ele tem sido genial. Eu tô tentando ser assim “vou gravar e foda-se”, eu mostrei as canções pras pessoas, as pessoas ouviram. O Marcus Preto, com quem eu também estou trabalhando pro disco agora, na primeira conversa que a gente teve, falou: “Ju, eu acho que você tem que gravar um disco mais de intérprete do que de compositora, porque você é muito intérprete, é o seu primeiro disco sozinha, então é uma forma de apresentar você para o mundo”. Eu já tinha um monte de músicas já, doida pra gravar as músicas, mas eu disse “tá bom”, e tentei não ser ansiosa. É só o primeiro, pois faço o primeiro assim, o segundo eu faço inteiro autoral. E aí eu fui mandando minhas músicas pra ele e ele foi mudando de opinião e aí foi muito bom. Ele disse “cara, suas músicas são ótimas”. E eu consegui duas parcerias com Chico César, uma com Zeca Baleiro, tem música com Caio, tem música com Julia (essa eu já gravei no EP), foi vindo uma galera muito bacana para o trabalho, e aí foi fortalecendo também o release e o disco ao mesmo tempo. Também busquei parcerias com pessoas nordestinas, queria entender o que era isso. Eu fiz três músicas com a Josyara e uma vai estar no disco dela e eu não vou gravar. E eu fiz uma outra música com ela que tá no ar. E uma outra que ela tá querendo gravar. Então, Bruno, é agora que eu tô aprendendo o que é ser compositora, que é você fazer a música e não gravar [risos]. Porque até então eu estava só me salvando, entendo o mercado, a sobrevivência e o artístico. Eu quero cantar as minhas canções porque eu preciso acreditar em mim e esse processo é sobre autoconfiança mesmo, de libertação, de dizer “pô, eu sou capaz de compor”. E se o meu disco não for um disco bom, ele faz parte de uma transformação, faz parte de uma virada que abre espaço pra muita coisa, pra muitas pessoas, pra entender que é possível, que a gente pode, que a gente deve. Porque foi difícil pra mim. Desde 2016 que eu estou tentando acreditar que eu posso fazer o disco.

Aí eu fui fazer o show “No raso da Catarina”, que é só o repertório nordestino menos conhecido no sudeste, com o Rodrigo Garcia. A gente trabalhou muito essas canções. Eu até me arrependo de não ter lançado o disco do “No Raso da Catarina” antes, mas eu estava tão confusa achando que não podia ser intérprete (que é um erro), eu achava que não valia a pena lançar um disco de intérprete. Dei bobeira, porque as pessoas adoram o repertório do show, inclusive mais do que as minhas músicas. Então, falei com o Rodrigo “depois de eu lançar meu disco, a gente lança o ‘No raso da Catarina’, porque vale a pena e eu sou intérprete sim e vamos lançar”. Mas eu acho que o meu disco, o “Nordeste ficção”, que vem aí, é um processo de libertação mesmo, é tipo “caraca, você precisava muito focar numa parada sua para você se salvar”, do desânimo de você viver um ano difícil, uma vida difícil, uma solidão, de você estar distante dos amparos, o processo de compositora é porque eu precisava acreditar nisso. Aí, quando a Josyara grava uma música minha e eu não estou no disco é uma vitória, eu chorei mais do que quando eu fiz a minha música. Quando ela me mandou a música e o arranjo, eu vim chorando no carro. Eu lembro muito. Porque uma pessoa que eu admiro muito vai gravar uma música nossa e eu não vou cantar, ela quer gravar, no disco dela, porra! É muito mais legal! Eu também fiz uma música com a Iara Ferreira e ela falou que vai mandar pra pessoas que pedem canções a ela. Quando me convidaram pro EP, tinham algumas músicas que eu achava que não se encaixavam na ideia do disco, e uma delas era a música que eu fiz com a Julia. A música com a Josyara eu comecei ano passado, eu perdi a voz durante uma semana, eu fiquei muito traumatizada, “o que tá acontecendo comigo?”. E eu sempre tive problemas de saúde relacionados a essa região, eu tirei um câncer de tireóide. Então sempre tive problemas de parar de cantar, de ficar rouca, e eu não aguentava mais, e aí quando eu fiquei uma semana sem poder falar, eu comecei a gravar as músicas, tudo o que vinha na minha cabeça, de madrugada… Eu, rouca,  pegava o telefone e fazia [cantarola com voz rouca] e no dia seguinte ficava ouvindo. Quando chegou a pandemia, larguei o foda-se. Mandei uma mensagem para o Zeca Baleiro, consegui o contato, mandei uma mensagem morrendo de medo, e ele me respondeu e foi muito doido também. Ele disse: “eu já conheço o seu trabalho”, aí eu sentei no sofá e comecei a chorar de novo. Eu falei: “eu não acredito, a gente não sabe de nada, a gente fica só achando que só faz acabar na música e aí a gente recomeça quando o Zeca Baleiro fala que já conhece o seu trabalho”. Ele foi muito solícito e falou “eu topo”. Eu falei “caraca, ele é mais acessível que os meus amigos”.

“Agora vou ter que ser eu, uma cantora sapatão, nordestina…e o que mais?”

Pérola Mathias – Parece que você viveu dez anos em um nesta pandemia, né?

Juliana Linhares – Eu estou exausta, confesso. Parece que ainda não acabou, que ainda é dezembro. 

Julia Branco – Eu fiquei me reconhecendo em várias coisas que a Ju falou, da gente não se reconhecer como compositora e ir entendendo um processo pelo qual a música vem passando. Eu acredito que se a gente olhar pra música de dez anos atrás, a gente sabia de muito menos nomes de compositoras mulheres, embora elas estivessem aí. Então, teve, de fato, um processo que vem acontecendo na sociedade e que vem reverberando nas mulheres e que, de alguma forma, traz uma mudança muito grande na música brasileira. Engraçado que umas das primeiras pessoas a me falar sobre isso e que a música precisava da voz das mulheres como autoras foi o André Midani. Eu lembro que no processo do meu disco, ele me falou que o que vai vir de novo na música vai vir das mulheres. Realmente, as mulheres precisam cantar a sua história, falar na primeira pessoa, de alguma forma. Me reconheci em várias coisas: o medo de compor, o medo de mandar a música, não saber tocar um instrumento, e como parece que alguns lugares não nos são, muitas vezes, autorizados. De alguma forma, essa pandemia trouxe muita força nesse sentido, porque além das composições, a gente está vendo muitas mulheres agora produzindo discos, entrando na produção de música. A própria Josyara é um exemplo disso, a Luiza Brina… Isso já é um novo giro, porque essa pandemia nos tirou o contato e eu também tô me vendo assim: “de repente vou ter que aprender violão, como é que eu monto um show sozinha?”. É isso, na escassez, nos desafiando a nos permitir ocupar esses lugares, a ter a coragem mesmo de ocupar esses lugares. Eu queria te perguntar duas coisas, na verdade: uma é como você enxerga esse cenário das compositoras mulheres — porque realmente existe uma força na composição que é diferente da intérprete, embora eu ache que interpretar também é ser autoral, e você já era autoral muito antes de compor. E, quando você começou a compor, isso somou, acrescentou à autoralidade que já existia na sua voz, na sua interpretação e tudo — então, eu queria que você comentasse essa sonoridade das mulheres, como você enxerga esse momento, o que será que vai ser a partir dessa pandemia? Eu entendo todo esse processo que eu sei que é você chegar no seu disco solo, que é um processo longo, que vem lá de 2016, que já foi e voltou, e como boa capricorniana você sabe que pra construir as coisas você tem que subir a montanha, e não é só você, somos todos nós, mas acho que talvez não tenha sido só isso o que fez você subir essa montanha agora. O que foi que aconteceu que fez você falar “ah esse ano eu lanço meu disco, esse ano vai ser”?

Juliana Linhares – Eu realmente acho que eu fiquei muito desanimada. E eu sou muito capricorniana. Era um desânimo pensar “eu vou desistir, eu não sei o que fazer, porque o Pietá é incrível, mas não estamos trabalhando e aí vai ficando difícil, a gente está distante, um está num lugar, outro está no outro, que desânimo essa vida artística, esse mundo. Só que ao mesmo tempo meu capricórnio fazia “você vai jogar fora onze anos de montanha?” [risos]. Era assim, entendeu? “Como você vai fazer isso, minha filha?” Eu já passei onze anos tentando, não é possível que eu não vá tentar fazer meu disco e jogar fora todo esse investimento?! Então tem muito a ver com isso. Ao mesmo tempo, eu também estava um pouco frustrada porque eu não conseguia fazer meu disco. Eu reconheci isso. Foi bom. “Acho que eu estou frustrada”. Aí eu pensava: “imagina se eu não fizer agora? Daqui a dez anos. Eu vou estar dez anos mais frustrada. Não, é melhor fazer!”

E a coisa de estar deprimida. Eu lembro de naquela ação toda do Black Lives Matter, eu fiquei muito envolvida, pensando na minha vida mesmo, no que eu estava fazendo no apartamento em plena pandemia, com toda aquela questão “vou pra rua ou não vou, cara, quanta informação”. Eu assistia ao jornal o tempo inteiro, eu ficava contando casos. Eu estava muito envolvida com tudo que estava acontecendo e a minha cabeça estava muito na merda, tava muito desanimada. Eu precisava de algo que me desse alegria para acordar, algo que me fizesse focar em alguma coisa que tenha vida, que tenha possibilidade de futuro, porque se não me der nenhuma possibilidade de futuro, eu não tenho vida, para olhar, para querer. Minha terapeuta me falou: “Juliana, você já percebeu que você parou de sonhar?”. Aí eu fiquei com isso na cabeça. É verdade, eu tinha parado de sonhar. Eu vivia só a realidade. Eu não me imaginava em lugar nenhum, eu não pensava em mim: “olha eu, lá no Faustão!” — a louca [risos], brincadeira. Eu não pensava assim: “olha eu na Torre Eiffel saltando e cantando pendurada”, sei lá, eu não pensava em nada, eu simplesmente ficava ali. E isso foi me tirando a alegria mesmo. Eu fui achando que a vida era muito mais dura do que realmente era, que a vida era muito menos bonita. Eu fui ficando deprê, desanimada mesmo, olhava pras coisas e nada tinha muita graça. E quando eu comecei a fazer show e não sair bem, aí eu comecei a ficar preocupada. Antigamente eu fazia um show e parecia que minha energia tinha sido renovada, tinha um canal de ligação com alguma coisa que se abria e eu meditava enquanto cantava. E isso não estava acontecendo mais. Acaba o show e eu tava assim… “estou mal, está dando errado”. Então, eu acho que foi tudo isso, olhar pra minha vida e pensar o que que eu queria, resgatar um pouquinho do sonho, foi retorno de Saturno, terapia, cabeça pensando, pensando, pensando, olhando a vida, pensando que eu precisava pegar a minha vida pela mão. Olhando as questões pretas e olhando pra mim e pensando “o que que eu estou fazendo aqui, gente? Ninguém quer me ouvir, o que é que eu vou dizer? Ah, vou fazer uma musiquinha… Agora vou ter que ser eu, sou uma cantora sapatão, nordestina…e o que mais? Eu sou uma pessoa privilegiada, eu nunca passei fome, minha família me aceitou, está tudo bem, a gente tem que sair da gente, né? Passei perrengues, claro, como todo mundo, mas… Era confuso mesmo, era uma crise, porque politicamente você precisa entender quem você é. Não dá pra você não ser. Eu fui tentando olhar pra mim e entender “cara, eu tenho uma voz que comunica, eu consigo comunicar cantando”. Mas foi difícil pra mim, porque eu desvalorizei tudo o que eu tinha. Foi um processo de deprê mesmo, eu tô abrindo aqui uma situação que aconteceu. Foi isso, Juju, olhei pra minha vida e disse assim: “ou eu faço essa merda ou eu faço nada!”. E fazer isso tem a ver com compor, porque tem a ver com acreditar, que tem a ver com abrir caminho, que tem a ver com perceber que eu tinha possibilidade de ter gente que vai me ouvir. Eu dizia: “caraca, eu não sou uma artista grande, mas eu tenho um público, as pessoas vão ouvir o meu disco. Pode ser pouca gente…”.

“Não é sobre isso o meu trabalho.”

Rafael Julião – Juliana, desculpa te interromper, eu fico pensando… Muita coisa no seu discurso vai encaminhando para um entendimento do que seria o circuito da canção contemporânea. Porque antes, era claro: tinha as gravadoras, tinha o circuito de shows que você fazia, tudo estava posto. O tempo inteiro na sua fala, de descoberta de cantora, você falou “nenhuma cantora de Natal vinha me assistir, quando eu ainda não era cantora”. Então, eu entendo que: “olha, quando as cantoras vão assistir é porque agora eu sou uma cantora. Quando eu tenho um disco, então agora eu sou uma cantora. Quando eu componho e tenho parceria e tenho pra quem mandar os áudios…”. Enfim, a minha pergunta é: como você enxerga, agora, ser parte de um circuito? São essas parcerias, onde gravar, como gravar, como ter e manter esse público? Como você se vê dentro desse circuito é a primeira pergunta. Eu vi a sua live com a Josyara, me parece que essas questões contemporâneas também trouxeram outra coisa, outros atravessamentos, as discussões de gênero, de raça, estão amadurecendo um pouco nesse momento e estão trazendo outros tipos de evento, outras aberturas, tem agora essas coisa das lives, que eu não sei se vão se encaminhar pra algum lugar… E a segunda pergunta tem a ver com isso. Sem correr o risco de parecer psicanalítico, olhando agora esse circuito, com o que que dá pra sonhar? Com o que, sendo uma artista contemporânea, dá pra sonhar? Dá pra chegar ali, onde eu quero estar, ou já está?

Juliana Linhares – Eu acho que já está. E eu acho que é essa realidade que a gente tem que encarar. É que a gente acha que nunca está. E já está. A vida já é isso que é agora. Eu já tenho 31, minha vida já está acontecendo. Primeiro, eu acho que é isso. Acho que esse é um processo de amadurecimento de vida humana, é sobre você perceber que você foi embora, largou a sua família, foi lá ficar sozinha, e construir tudo, e que você tem um parâmetro de sucesso, que é vendido ali — pela Anitta, por exemplo — e que não é real e você fica a vida inteira ali batendo cabeça quando percebe que sua vida já está acontecendo. E eu acho que dá pra sonhar, sempre, com a próxima ação, com o próximo passo, é importante, entendeu? Como eu estou sonhando agora de novo com o meu disco. Meu sonho agora depois desse verão era ter uma casinha de praia. Eu fiquei assim: “poxa, eu queria tanto ter a minha casinha de praia, pra encher de bicha e sapatão, êêê…, ficar todo mundo lá, e ter liberdade, eu queria isso…”.

Rafael Julião – Você chegou a esse circuito. Eu queria que você descrevesse esse circuito da canção contemporânea. Você já é uma presença importante. É isso um pouco o que eu quero dizer. Pelo menos é assim que eu penso: o quanto você é importante para esse circuito.

Juliana Linhares – É porque a gente, dentro das nossas questões, é difícil chegar e dizer “eu sou uma parte importante desse circuito”. Você fica assim: “o que é que eu posso fazer para ir mais pra lá, pra ir mais pra cá, pra conseguir isso, pra crescer, pra ter dinheiro, pra poder ter minha casa de praia, ou até a minha casa casa, antes da de praia e envelhecer com saúde”, são várias coisas, né? Como é que eu vejo a nova produção contemporânea? Eu acho que a gente está vivendo o momento de dentro, talvez daqui a um tempo a gente consiga olhar a produção conjunta e dizer “essa produção, dessa década, compõe uma diferença na música”. Mas eu acho que mudou tudo. Mudou line-up de festival, no nosso circuito mudou tudo, mudou quem vende, mudou quem ouve, mudou quem entra, mudou quem é entrevistado, mudou quem está nos lugares, mudou quem vende produto. Ainda bem. Na nossa bolha, no nosso tamanho, no nosso circuito, como você falou, é isso. Estruturalmente pra mudar haja caminho pela frente, né? Mas se você for olhar um line-up de festival, tem a Linn da Quebrada, tem a Josyara, tem a Liniker, tem a Letrux, que de um jeito ou de outro tem um trabalho específico, um posicionamento específico. Então, há muito mais mulheres, muito mais mulheres dentro da luta LGBTQIA+. A gente já mudou um cenário. Isso vai resultar em alguma coisa daqui a um tempo. Já está resultando. Já está resultando em mim, que fico em casa pensando “o que que eu faço com a minha voz branca para eu poder estar dentro desse circuito?”. Porque não adianta eu sair cantando qualquer merda e não falando nada, não adianta. É mais legal ir ver a Liniker. Então, se eu quero estar, eu preciso me colocar em relação a isso que está acontecendo. E isso fez eu mudar o que eu estava compondo, como eu vou lançar meu disco, com quem eu quero estar, por mais que eu não tenha conseguido tudo que eu quero mudar, na minha trajetória, porque ainda tem muitos homens, porque ainda lutamos por mais mulheres nas equipes — o meu disco já não é. Porque eu já tinha outras parcerias, a longo prazo, com homens, amigos que me apoiaram. Mas é uma questão pra mim o tempo inteiro. Quem eu vou colocar em cena, pra quem eu quero abrir espaço dentro do meu trabalho, pra quem que eu vou dar voz, quem eu quero que o meu trabalho represente. E aproveitar o espaço pra dizer coisas interessantes. O Pietá tem quase dez anos de trajetória e a gente nunca fez um show vazio. As pessoas cantam as nossas músicas, as pessoas me conhecem. É feio negar que eu já estou.

Sobre produção e repertório, eu acho que mudam os temas, mudam as sensibilidades, muda quem ganha o dinheiro às vezes e isso é bem importante, né, muda quem você convida, muda a estrutura da banda — quando as mulheres começam a produzir. Os espaços de poder e representatividade que vamos ganhando. E isso é muito legal. Acho que a longo prazo a gente vai entender sonoramente a transformação da música contemporânea também a partir do som das mulheres. Acho que é muito mais mulher cantando, compondo, produzindo… Olha o assunto como mudou? Antigamente a gente só tinha Chico Buarque falando sobre amor, agora a gente tem a Linn da Quebrada falando sobre amor. E é muito diferente. Vai transformando… Eu não sou uma artista mainstream, nesse lugar que vai começar a produzir um pop específico pensando somente em virar uma chave de público — não é sobre isso o meu trabalho.

“Talvez eu seja uma cantora dos forrós do futuro.”

Pérola Mathias – Você falou do seu disco, “Nordeste Ficção” — não sei se vai ser esse o nome, não sei se vai ser esse o tema…

Juliana Linhares – É o nome. 

Pérola Mathias – Queria que você falasse um pouco da relação entre os temas dessas suas composições novas e a sonoridade que você tem explorado nesses anos de trajetória junto com o Pietá. E que você falasse um pouco sobre o lugar desse tema dentro da sua vida, da sua criação, da sua produção, que é o Nordeste. O que significa esse tema pra você? Como pensa essa identidade nordestina, de vir desse lugar e se estabelecer no Rio de Janeiro, onde eu acho que tem uma identidade local muito forte, mas também tem uma relação com gente que vem e que passa ali o tempo todo. E você acabou estabelecendo ligações com vários compositores que também estão ligados a essa identidade do local de onde eles são. Como esse tema está presente na sua composição e na sua sonoridade? O que significa a ideia do nordeste pra você e a invenção desse lugar ou dessa ideia?

Juliana Linhares — Quando eu comecei a compor, quando eu comecei a acreditar nas minhas canções, não eram canções exatamente de um lugar político. Eu resolvi cantar as canções que eu achava bonitas. Eu resolvi escolher as letras que eu achava que eram bonitas, poéticas. Então o disco não fala sobre um assunto só. Eu já tinha começado essa pesquisa do Nordeste, de primeiro dizer: “olha a minha voz, ela é sobre isso”. Porque quando você sai de Natal e vai pro Rio, você percebe que é natalense, porque aqui todo mundo é natalense, lá, só eu. Aí eu virei a natalense, aí você é a nordestina, você tem aquele sotaque, aí você passa um tempo dizendo “nada a ver”, mas depois “não, é sobre isso mesmo”. E isso é uma borda fluida, porque ao mesmo tempo em que você diz “você é nordestino, você é isso mesmo, eu vou me colocar assim”, surge o questionamento sobre o que é ser nordestino, a invenção desse termo, sobre a invenção de uma região, sobre a invenção de uma fronteira, sobre a manipulação de um povo por ele mesmo, a manipulação de uma economia dentro de um país, para que o nordestino seja o que ele é hoje e o que a gente está lutando muito nos últimos tempos para resignificar. Por isso que é tão importante pra mim hoje entender esses assuntos, mais do que fazer um disco… O mais doido de ser nordestina é tentar fazer as pessoas entenderem que tudo é invenção, e que a supervalorização do nordeste também é uma estratégia que se apoia na própria região. Porque agora é o máximo ser nordestino, né? Então, você fica ali no meio pensando em como a mídia constrói as narrativas e se aproveita delas… No meu disco, eu tento quebrar algumas expectativas do que se espera tradicionalmente do Nordeste e digo assim “isso é um disco nordestino”. Aqui ó, o rock, foda-se. Mas ao mesmo tempo que eu aponto eu também reafirmo alguns lugares que já fazem parte da gente. A minha escolha foi “Nordeste Ficção” nesse sentido da invenção do nordeste, que é um tema que uma galera com o pensamento parecido com a meu está questionando muito hoje. Eu tenho um coletivo de amigos de teatro que fez um espetáculo chamado “A invenção do nordeste”, a partir do livro chamado A invenção do nordeste e outras artes, do Durval Muniz. A peça me deu ânimo pra pensar nisso. Eu comecei a ler esse livro e é muito doido, porque ele conta historicamente todo o processo do surgimento da região após a criação do regionalismo, de tudo, até como o nordestino se tornou risível pro sudestino. Fizeram isso tudo, e a nordestinização passou a ser absorvida e a se dar pela própria região. Criaram isso tudo, até a seca foi inventada para que o nordeste fosse socialmente, economicamente, intelectualmente, durante um tempo, inferior, é real.

“Era uma mulher vestida de cacto olhando de um jeito irônico e eu pensava ‘sou eu!'”

Então, fui pensando em como cantar o nordeste hoje, porque minha voz traz essas imagens, quando eu canto o show “No Raso da Catarina” e as pessoas gostam do repertório, fico refletindo sobre a construção do imaginário da região dentro e fora dela. É um repertório político, porque aponta questões e acende alguns esquecimentos, e é um repertório lindo. Eu também achava que dentro do meu pensamento contemporâneo, eu precisava também trazer a questão desse nordeste que as pessoas não falam sobre. E eu queria brincar com as ficções possíveis. Pegar desde o rock ao xaxado mais tradicional, à releitura do nordeste que tocava na minha casa, a uma crítica bem humorada, a uma música mais sapatão, tudo, dentro das ficções que criamos ao longo, nós mesmos nordestinos, da nossa breve história. Tem faixa que vai falar sobre a invenção, tem faixa que vai falar sobre a mentira do sucesso. Quando eu estava começando a brincar com a ideia de nordeste ficção, uma amiga me mandou uma foto de uma mulher vestida de cacto. Aquilo ficou também na minha cabeça. Foi uma das minhas primeiras referências. Era uma mulher vestida de cacto olhando pra frente de um jeito irônico e eu pensava “sou eu!” e quando eu comecei a querer fazer o meu trabalho foi quando eu comecei a entender também que no Pietá eu não podia fazer tudo o que eu quisesse. Sei lá, me vestir de cacto. Aí eu olhava aquela mulher vestida de cacto e eu pensava em mim e eu comecei a fazer uma música que é a história de um cacto que sai do nordeste e vai pra São Paulo. Eu estava em casa e cantei “um dia eu sonhei que era um cacto…” e fui brincando com a coisa do cacto e eu não acreditava muito na música e toda vez que eu cantava eu cantava rindo porque eu não conseguia acreditar que eu estava cantando aquilo. Aí eu vim pra Natal e mostrei pro meu irmão e ele falou “é muito legal essa música” [risos]. Mandei pro Durval a música. E ele me respondeu “ah, eu estou arrepiado, como um cacto intacto”, foi muito engraçado. E aí o Durval me mandou uma frase a mais. “Você podia falar também que o nordeste é uma equação artística” e eu botei. Ele adorou a música e eu mandei também para a galera da [peça] “Invenção do Nordeste” e eles amaram a música e eles querem botar no filme deles. Mas eu não vou falar sobre a invenção do nordeste só nas canções, eu vou falar entre as canções, eu vou falar na estética do que eu vou escolher, vou falar na hora do show. Eu escolhi um tema que abre espaço para eu discutir isso com as pessoas, na minha rede social, nas fotos que eu vou postar, nas pessoas que eu quero trazer, nas entrevistas que eu quero dar. Não é que o disco só fala sobre a invenção do nordeste, o disco fala sobre o meu amor, sobre a minha vida, várias coisas, mas o disco traz esse pano de fundo da invenção do nordeste.

Rafael Julião – Eu fiquei pensando o tempo todo na canção do Belchior, “o nordeste nunca houve”, de “Conheço o meu lugar”. O Rio de Janeiro é também muito auto-centrado, né? O carioca nasceu para acreditar que ele é o centro do universo, e esse circuito do qual a gente está falando, tenho a impressão de que ele se restringe a Rio e São Paulo — São Paulo de uma maneira mais organizada, o Rio de uma forma outra, mas você falou de circuitos tradicionais que existem no nordeste, de canção. Esse termo contemporâneo também permite outros espaços que o próprio nordeste se forme como um outro centro. Como você vê a cena fora do Rio e de São Paulo?

Juliana Linhares – A gente vai praí, pro sudeste, e a gente fica com a cabeça muito no sudeste. Aí é o natural, acontece com todo mundo, você entra nas suas bolhas e você quer fazer uma coisa interessante pra estar neste circuito, tentamos crescer, fazer o trabalho funcionar dentro disso. Aí quando eu venho pra Natal, vou cantar no casamento da minha prima pra 200 pessoas que não conheço direito. A banda da festa toca forró. Eu canto “Tareco e Mariola” e as pessoas amam. E aí você se dá conta de que muitas vezes se esquece de uma galera. Aí eu penso “eu canto forró, porque que eu não vou cantar um forró no meu disco pra essa galera da festa? Como ser ouvida pela minha família, nas casas das pessoas que estão aqui, que não tem acesso à minha bolha, como tocar pra mais gente, que consome a música “nordestina”? E que precisa de novidade, de gente nova inspirada nas referências daqui?”. As pessoas gostam de ouvir canção, como Amelinha fazia, Belchior, O Pessoal do Ceará…e agora o que chega a mais pessoas são os Barões da Pisadinha e ainda Elba que segue sendo ouvida bastante por aqui — e entre isso, o que que está? Onde estamos eu e as pessoas como eu? Quando penso no meu disco, eu estou pensando muito nesses espaços. Eu quero muito dialogar com o Rio e São Paulo, que é onde eu estou, mas eu quero muito também conseguir chegar aqui em cima, porque eu sou daqui, pras pessoas que me conhecem. Ah, sim, vou falar sobre esse novo centro. Existe um novo centro da canção contemporânea no Nordeste? Existem vários. Recife tem uma galera muito foda produzindo. Rio Grande do Norte tem também uma galera. Eu vou tentar me colocar nesses lugares, juntar também essas pessoas que estão fazendo e olhar para um novo centro, sim, uma cena forte de compositores novos e incríveis. Mas meu foco não é um novo centro no Nordeste. Eu sigo no sudeste e a partir dalí eu quero descentralizar, eu quero tentar pelo menos entortar essas fronteiras tão impostas. A Invenção do Nordeste lembra isso. Acho que todos nós artistas queremos isso, né? Chegar nas pessoas. Eu adoro a minha a bolha, eu sou muito grata à minha bolha, fã dos meus parceiros, e eu vou continuar trabalhando com ela e para ela, mas eu acho que eu também desejo olhar para fora dela, ver como incluo as pessoas nela, a partir de que diálogos. Eu não quero estar num novo centro e me fechar, quero os centros se abrindo, eu quero é poder ser ouvida pelo público do Pietá, que me deu tanto, e tocar aqui na rádio que toca na cozinha, sonho né? Penso nisso quando gravo minhas músicas. Penso nas tias do meu pai lá no sítio, se o povo de Caicó ia gostar e também penso em vocês aqui, nas pessoas que eu amo. E com algum esforço a gente se espalha, porque “Perdendo o juízo” estava na rádio e estava na rádio do Rio Grande do Sul. Então a gente pode tocar na rádio aqui. Não é a maior rádio do mundo, mas toca. Pra não ficar fissurado só em conseguir um espacinho no jornal, em entrar num programa legal de SP, ou no showcase da SIM SP, no sufoco pra conseguir uma matéria em revista especializada, em crescer no spotify pra entrar em playlist. A gente quer essas coisas, mas muitas vezes você se frustra tentando entrar num mercado específico e fechado. 

“Como não nos é autorizado não ser uma artista blogueira…”

Caio Riscado – É uma pergunta da caixinha das perguntas um pouco desagradáveis, que eu acho que é importante a gente refletir sobre isso e vejo pouca gente falando sobre. Dentro desse circuito da canção contemporânea, eu acho que tem todo esse lado da canção, que Rafael colocou muito bem, e tem todo um lado do mercado, que eu acho que a gente vem batendo cabeça há muito tempo. O mercado fonográfico não é mais só fonográfico, ele é imagético, performativo, de circuito. Como se colocar dentro de uma produção “closeira”, de uma geração “closeira”, quando você percebe que a produção de uma música traz a produção de uma imagem, a produção de uma identidade, a manutenção de uma rede social, por exemplo. Como é difícil ser pequeno, como não nos é autorizado ser pequeno — isso eu acho que é fundamental.

Juliana Linhares – Como não nos é autorizado não ser um artista blogueiro…

Caio Riscado – Não ser uma artista blogueira, não ser uma artista que para além da sua música, não venda também um batom, por que não? Um aplique de cabelo, por que não? Porque eu sinto que a gente vem mascarando essa situação, a gente não está falando sobre isso, e sinto que você pisa nesse terreno já pela nossa herança teatral, o performativo já está em você, já está no seu corpo. Você não precisou, por exemplo, contratar uma preparação corporal para o seu show, você não precisou, por exemplo, contratar um diretor para te situar no que a produção de presença do estado da arte está requerendo hoje, porque você estudou isso na academia, inclusive junto comigo. De tudo isso que eu disse existe uma crueldade — e aí a gente está falando no sentido negativo da crueldade — que já quase já não há mais espaço para cantar, somente cantar. Quer dizer, cantar virou uma série de outros desdobramentos e cobranças. Existem lados muito positivos e existem lados muito negativos. Queria que você comentasse um pouco isso, porque não vejo isso ser assunto, as pessoas parecem que já naturalizaram esse processo e às vezes fazer um cabelo novo e estar com uma parceria com a marca Melissa, por exemplo, se torna mais importante do que a nova canção que está sendo lançada. E isso pra mim é algo que a gente precisa refletir urgentemente. Então, eu queria que você comentasse esse outro lado do cenário da canção contemporânea.
Julia Branco – Me parece que, com a pandemia, isso se mostrou ainda mais, porque virou quase uma sobrevivência para estar sendo visto, porque a gente só tem a rede social. Então parece também que o futuro é meio nebuloso nesse sentido.
Bruno Cosentino – Eu gostaria só de endossar a pergunta do Caio. Existe, para o artista da canção, um descompasso entre o retorno material e a quantidade de trabalho. A gente quer chegar naquele lugar que o André Midani falava, de sucesso comercial e sucesso artístico, e hoje em dia parece que é muito mais difícil encaixar isso. Não dá mais para você ter o sucesso da Anitta e ser artisticamente foda e constante — não que eu não goste da Anitta, porque eu adoro os dois hits que eu conheço dela — mas é outra proposta, é outro tudo. O André Midani também falou na entrevista que ele deu a Polivox que, ao longo dos anos, cada vez mais, o artista foi sendo cobrado de participar da divulgação e promoção dos discos, até chegar uma hora, que é o que o Caio falou, que chegamos na deturpação total desse circuito, que é ir para o outro extremo, quer dizer, agora você só faz a parceria com a marca tal e a sua música virou um jingle para ajudar a vender aquele produto e a sua imagem. Me inquieta muito é a questão da auto-promoção que é cobrada dos artistas, porque tem muito artista foda que não sabe se autopromover, diria que alguns dos melhores. E o papel político que o artista tem que bancar, porque acho que temos muito poder nesse campo, mas vejo muitos colegas bajulando jornalistas e formadores de opinião, somos pouco unidos e dóceis demais.

Juliana Linhares – Isso é difícil… A gente vai fechar um contrato e fica inseguro, porque o trabalho do artista é o principal, mas aí a produção fala: “mas a gente está entrando com isso e a gente vai fazer isso, e a gente vai trabalhar muito e a gente vai conseguir isso…”. E você fica assim: “ah, então tá.” A gente quer estrutura pro trabalho e essas relações são difíceis mesmo. A gente tem que se instrumentalizar. É histórico, né? Deixa eu ver, minha cabeça foi para vários lugares a partir das coisas que você disse. Acho que o Caio falou sobre estratégia. Dentro da nossa bolha sinto que se você faz uma música mais “raiz” não tem tanto espaço, o forró fica num nicho específico… Só se for raiz mesmo, a Lia de Itamaracá, aí sim. Mas nisso entram também discussões sobre representatividade, enfim. Quando Pietá começou o povo chamava a gente da “banda regional de Santa”, mais uma vez o regional colocado sem sua pluralidade, né? Sem nenhum aprofundamento, só porque a gente tocava um xote e tinha meu sotaque… E você tem que tá o tempo todo desconstruindo a parada. Eu ficava pensando em como perder o rótulo, “preciso de certos espaços de divulgação pra ir pros festivais, pra conseguir ser vista pelos curadores, porque ali se ganha um selo de qualidade, como entrar?” Mas hoje existem outras portas também. Estou aqui em Natal, a cena daqui teve que se fortalecer, o Rio não tem nem festival, o Rio não tem nada, nem casa de show. A cidade tá muito baqueada por esse caos político e econômico. O povo aqui em Natal construiu a cena, festivais, etc. Isso aconteceu, novos focos. Belém do Pará tem uma cena própria, cresceu tanto que o Brasil assumiu.

Eu acho que o que o Caio fala é um fato. O que eu sinto é que, do nosso tamanho, eu me sinto multiartista também pela necessidade. Os artistas hoje em dia, tipo Julia, ela apresenta um podcast, ela faz um projeto ali, a gente vai buscando formas de fazer um trabalho interessante e que possa ocupar vários espaços. Se você fica na coisa “só vou cantar”, é mais difícil, eu acho. A própria Letrux, de quem eu sou fã, está aí. Letícia [Novaes] é um exemplo pra mim da nossa geração, foi uma pessoa que cresceu, chegou num lugar maior com um trabalho bastante autoral, viajou, ficou conhecida no Brasil inteiro, fez shows grandes, mas eu não vejo ela super vendendo produtos ou chegando a milhões no Instagram. Não sei nem se ela mesma gostaria de fazer isso, né. Mas me faz pensar em quem ganha, como ganha. Em quem vende e como vende…num sistema girando e gente maluca dentro dele precisando se manter. Eu preciso me desdobrar pra ganhar dinheiro, faço mil coisas e não consigo crescer tanto nas redes. E precisamos das redes. Eu acho que o interessante é como se fazer interessante na rede social, que não seja só vender produto. “Eu vendo produto, mas aí também eu faço um livro, eu faço o meu podcast que é legal, eu trago entrevistas maneiras e vendo produto”. Falando de mim, eu faço teatro, não quero deixar de fazer, e agora eu tenho um projeto infantil específico com o meu irmão e estou investindo nele a longo prazo, buscando outros meios de sobrevivência.

“A música precisa realmente entender qual é o lugar dela no meio disso.”

Caio Riscado – Eu quero esmiuçar a questão. Vou trazer um exemplo muito mundano, mas que explode a questão para uma série de coisas. Eu vi você passar por isso, que foi a proposição de cantar “Tareco e Mariola” de calça jeans, All Star e cabelo colorido, quando as pessoas queriam você de saia rodada de chita e flor na cabeça. Porque isso é um controle de narrativa. A gente pode pensar que essa questão é pequena, mas ela é muito complexa, está dentro de todas essas invenções que você falou. Eu me lembro no início do Pietá, era uma coisa que me incomodava muito, que era dizer que você era a nova Roberta Sá. Então, como a gente precisa ainda corresponder a produtos ou criar os nossos próprios espaços dentro dessas redes. As pessoas dentro dos círculos acadêmicos, de que eu também faço parte, às vezes falam “não vamos falar sobre Instagram, porque é uma coisa muito pequena”, muito pelo contrário, talvez seja um dos objetos filosóficos de maior preocupação do momento. Então, não é preciso desprezar os dispositivos, é preciso conviver com eles e disputar essas narrativas também. Então, a questão pra mim é nesse lugar.

Juliana Linhares – Eu vejo muitas pessoas que fazem mais campanhas do que são ouvidas, no Spotify, por exemplo. Elas ganharam um lugar de representatividade. É complicado falar sobre isso mesmo. Porque eu acho muito valioso um trabalho de representatividade, a pessoa vai abrindo espaços para outros tipos de identificação, que não é só musical, não é a afinidade do som, mas do que você representa, da força que você coloca, sua imagem, você segue aquela pessoa porque você se sente empoderado vendo aquela pessoa estar no mundo e o que ela fala e o que ela faz e você não ouve necessariamente a música dela. É uma ponte. A gente está atravessando esse caminho. É o que a gente já está vivendo. Os influenciadores… Muitos deles não fazem um trabalho artístico. Eles falam sobre coisas, eles postam e as pessoas se sentem envolvidas com isso. Agora, a música precisa realmente entender qual é o lugar dela no meio disso. Porque eu acho que teve uma ponte. As pessoas eram da música e foram virando influenciadoras. Agora, talvez estejamos mais influenciadores do que cantores, do que músicos mesmo. Não sou eu quem vai determinar quem é quem, eu tenho o meu gosto, as pessoas que eu quero seguir, que eu acho interessante, e quem é que vai impedir ou limitar uma pessoa de fazer uma canção? As pessoas podem fazer o que elas quiserem. Você tem que escolher o que você quer consumir e talvez influenciar as pessoas que seguem você a consumir o que você acredita. É preciso ter coragem. Você pode chegar na sua rede social e dizer: “Eu não concordo mais com a forma como isso é feito, eu queria dizer para vocês seguirem tais pessoas, eu acho que isso é um novo trabalho da cena contemporânea, que eu acredito”. Você pode ser um influenciador da forma como você acha interessante pensar. Financeiramente, eu me vejo nesse lugar. Eu não vendo nada, não vendo produto nenhum, nem pintando o meu cabelo eu vendo tinta, não tenho muitos seguidores assim, as pessoas me procuram muito mais por causa da música. Isso é um fato. Aí você tem que aprender a dialogar com quem está procurando você. Perguntar o que as pessoas querem e ver o que você quer fazer com isso. Quando eu posto um vídeo tocando violão no meu stories, ele tem muito mais visualizações. Então as pessoas realmente se interessam por me ver cantar. Pra ter mais gente me seguindo, eu tenho que postar mais vídeos cantando e tocando. Mas eu trabalho muito com produção, então o tempo é curto. Quando eu faço perguntas e respostas, as pessoas querem saber sobre o trabalho, às vezes perguntam se você está namorando, o que vai fazer nas férias, e você, se quiser, responde. Eu acho que a gente, do nosso tamanho, é meio isso, criando ações, essas coisas das parcerias é legal. Eu tenho um trabalho com a Julia, eu lanço um EP com a Josyara, aí eu vou entrando na rede de uma, entrando na rede de outra, através da música, que é o que eu ainda vendo no meu Instagram. Quando eu vou postar uma foto, eu não sei fazer uma selfie minha, me acho ridícula. É mais fácil pra mim me identificar com uma coisa mais bem humorada, mais divertida. E acho legal ser sincero. Você tem que entender qual é a sua personalidade ali na rede. Não dá pra ignorar a rede. É onde você consegue dialogar com as pessoas. É onde você vende o seu trabalho. É como a Julia falou, deu uma piorada na quarentena, a quantidade de gente que está vendendo, vendendo, e criando tudo o que puder pra ter espaço. Eu entro e é tanta informação que eu não consigo mais absorver. Eu praticamente não paro pra ver um vídeo inteiro. E todo dia a pessoa tem que fazer. É muita informação, é muito conteúdo. O que isso virou? Será mesmo que as pessoas estão vendo os vídeos que eu estou fazendo? Será que eu estou conseguindo fazer um material que está ficando, que está comunicando? Eu vivo uma briga com o Instagram. Tem hora que eu faço “não, eu vou me meter!”, aí eu fico lá, respondendo pergunta, fazendo vídeo, aprendendo a tocar violão, contando uma história engraçada e vou buscando. Aí eu consigo ter várias visualizações, aí vai bombando, e você percebe que seu número no Spotify aumenta, porque as pessoas estão conectadas com você e elas vão te ouvir. Então, não dá para não estar conectado. Começando o ano, eu vou parar para fazer um trabalho de comunicação do meu Instagram. Eu não sei, eu sou uma pessoa em crise com o instagram, não sou uma pessoa rainha para falar sobre isso. Mas ainda acho que a gente deve estar onde as pessoas estão. 

Pérola Mathias – Acho que é muito bom que você tenha essa crise, e é uma pena que não estejamos fazendo essa entrevista presencialmente, porque tem muitos insights que a gente poderia discutir para além desta gravação. Não cabe eu começar a falar sobre isso agora, mas eu discordo que o caminho é pelas redes, principalmente depois dessa mudança do layout do instagram, que virou de fato um shopping. Acho que dá pra negar, sim. 

Juliana Linhares – Se você acha que podem existir novos caminhos, isso realmente me deixa curiosa, quer dizer, onde é que eu vou aparecer para as pessoas me verem e ouvirem? A sensação que dá é que a pessoa precisa lembrar que existe. Eu estou falando isso porque eu passei quase duas semanas sem entrar e meu número de ouvintes baixou. 

Pérola Mathias – Mas aí o artista pode ficar escravo dos números, o que não é legal.

Juliana Linhares – Fica, porque é ele que dá dinheiro no final do mês.

Pérola Mathias – Depende, o streaming está dando dinheiro?

Juliana Linhares – Pouco, né? 

Pérola Mathias – A gente tem que rever isso: como é que a gente vai dar dinheiro para os artistas sem ser pelo streaming
Julia Branco – O próprio streaming também caiu nesse lugar da novidade. Se você não está lançando alguma coisa com uma frequência muito grande, você começa a cair, e isso é muito absurdo, porque de alguma forma parece que os artistas tem que ser uma fábrica de produzir coisa nova a todo instante para que você não perca número. O próprio Spotify… Parou de lançar, deu dois meses que você lançou, já está velho. Peraí, já está velho?! Que loucura que é essa?! 

Juliana Linhares – É um assunto muito delicado porque eu não posso julgar o que as pessoas estão fazendo com a vida delas no Instagram, mas música muda por causa disso, os números vão ditando as coisas mesmo. A gente pode fazer resistência e buscar outros meios, a gente talvez ganhe menos dinheiro. Talvez a gente encontre um novo caminho. Tem que pensar que não dá é pra pirar tentando entrar numa mesma fôrma, fazendo a mesma música pra ser ouvido. Mas me preocupa a questão do acesso, ainda mais nesse período de Pandemia. Acho legal insistir num espaço democrático, estar onde as pessoas podem lhe acessar. Mesmo com toda a questão de grana que hoje dita o que você vê nas plataformas, existem pequenos milagres. Eu vou fazer um disco de canção e jogar nas redes. Bora ver. Eu sigo tentando fazer o que eu acredito, o que a gente se reuniu aqui por acreditar, eu acho também, que vocês me chamaram porque vocês acreditam nisso. Eu vou continuar tentando dialogar de uma forma que eu acredito, que seja sincera com o que eu faço, com o que eu ouço, com o que eu gosto.

Pérola Mathias – Eu só tenho a agradecer, Juliana, por essa entrevista.

Juliana Linhares – Muito obrigada, todo mundo.